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10/01/2019 às 08h44min - Atualizada em 10/01/2019 às 08h44min

A violência não conhece o riso

IVONE GOMES DE ASSIS
De acordo com a Unicef, o primeiro de janeiro de 2019 foi marcado com o estrelato de quase 400 mil crianças, que nasceram em todo o mundo. A questão é: Como as nações irão garantir a sobrevivência desses pequenos?

Ainda, a Unicef registra que, em 2017, cerca de “1 milhão de bebês morreram no dia em que nasceram e 2,5 milhões, durante o primeiro mês de vida”. As causas, em sua maioria, eram evitáveis, pois atrelavam-se à “prematuridade, complicações durante o parto e infecções como septicemia e pneumonia”.
De acordo com Charlotte Petri Gornitzka, para conceder o direito de sobreviver a estas crianças basta investir no capital intelectual dos profissionais de saúde e equipá-los adequadamente.

Aos que sobrevivem, a luta só está começando, pois, grande parte iniciará a peregrinação da fome, dos direitos humanos, enfim, a disputa por um lugar no mundo.
Muito se ouve falar sobre direitos e proteção da criança, mas foi somente em 1924 que se outorgou o primeiro Juiz de Menores no Brasil: José Cândido de Albuquerque Mello Mattos. Nascia, ali, o Código Mello Mattos, com o objetivo de assistir a criança e o adolescente. Esse Código ratificava a causa que o Juiz Mello Mattos vinha defendendo, há quase uma década, em prol da integridade física e intelectual do menor, sobretudo os desamparados. Foi um grande passo, mas não o suficiente.

De lá para cá, muitas histórias pintaram o quadro negro da sociedade. E, dia a dia, observamos que, em uma visão caleidoscópica, embriagados pelo capitalismo, os indivíduos, cada vez menos, enxergam o outro. Caminham feito máquinas, em busca da insaciável fome de acúmulos de coisas.

Os noticiários jorram sangue de mulheres que perderam suas vidas pelo fato de sonharem com um recomeço. A publicação periódica denuncia a estupidez daqueles que desonram mulheres e crianças, obrigando-as a conviver com a vergonha e a humilhação do estupro. Há uma semana, o estado do Ceará vem sendo estampado nos jornais, por sua triste condição de ataques e destruição. Os “hospitais clamam” por um entorpecente qualquer, capaz de fazê-los suportar a injustiça que assola a classe desassistida, que morre, cotidianamente, em seus corredores, à espera de um milagre chamado “respeito e tratamento”.

Parafraseando Guimarães Rosa, sei que é preciso ter coragem. Coragem para viver. Coragem para resistir. Coragem para não ensandecer. Coragem para não perder o pouquinho de amor que há dentro de si. Coragem para não desacreditar da humanidade. Coragem para chorar, (re)reagir e sonhar, não sucumbindo-se diante de tanta atrocidade.

A espécie humana vive um colapso comportamental. E como poetizou o luso Albano Martins (1990, p. 94): “Nos jardins de julho é com sangue que se regam flores, que se escreve a palavra humanidade, se inventa o sol, muda-se o rosto às cores”.

O mesmo escritor português, Albano Martins, em seu poema “Habitar”, anota: “A casa desabitada que nós somos / pede que a venham habitar, / que lhe abram as portas e as janelas / e deixem passear o vento pelos corredores. / Que lhe limpem / os vidros da alma / e ponham a flutuar as cortinas do sangue / [...] Até / que uma flor de incêndio rompa / o solo das lágrimas carbonizadas e férteis. / Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua / sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte”.

Para Justo Navarro (in: Rosa Montero, 2016, p. 169): “Ser escritor é transformar-se num estranho, num estrangeiro: você tem que começar a se traduzir [...]. Escrever é um caso de impersonation, de suplantação da personalidade: escrever é fazer-se passar por outro”, assim, tento passar-me por um ser indiferente à realidade que meus olhos contemplam, a fim de descrever as amortalhas e seus cadáveres, sem perder a razão.

Pois, como nos ensina Mikhail Bakhtin, à p. 374, de sua “Estética da criação verbal”: “A violência não conhece o riso”.
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