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24/12/2018 às 15h21min - Atualizada em 24/12/2018 às 15h21min

As canções que ouvi sem querer

ENZO BANZO
Olá, como vai você nesta terça-feira natalina? Espero que passe bem, naquele clima de peru com ressaca. Ouviu muita música? Querendo ou não querendo, é provável que sim. Nesta época quase não há espetáculos, shows e afins; até dá pra pegar um cineminha ou ver um filme na TV, mas o que rola mesmo é música para o ouvido de toda gente. O meu amigo, parceiro e grande artista Ricardim sempre comenta quando rola uma canção conhecida que ele não curte: essa é uma das músicas que mais ouvi na vida... sem querer.

A bola levantada pelo comparsa, de escutar muito uma peça sem jamais ter escolhido ouvi-la, me levou a algumas reflexões. Especialmente nesta época natalina, na qual os sons das casas ao redor parecem estar todos ligados esquentando o churrasquinho. Com atenção distraída, procuro compreender o fenômeno das canções que animam as festas da firma e da família, e que fazem a trilha das voltinhas de Uber, das compras no supermercado, de tudo aquilo que extrapola os limites do meu próprio play.

Dia desses, em um carro de transporte por aplicativo, prestei atenção na letra de uma daquelas que, vira e mexe, estou ouvindo sem querer. Confesso que dei muito risada quando entendi que a composição falava de um tal "Zé da Recaída", e que essa era a alcunha que a suposta amada havia usado para salvar o nome do rapaz no celular, tirando sarro daquele que repete dezenas de vezes o "atende aí" que puxa o refrão.

A composição chega a carregar certa originalidade por dar vida a esse sujeito tão comum, o carente inconveniente que fala alto, atrapalha a festa, liga quando não deveria ligar. Além disso, a música se vale da incorporação dos ícones tecnológicos contemporâneos para gerar uma identificação ainda maior com seu público. Salvar o nome no celular, olhar pro número na tela, ligar ou não ligar, tudo isso gera um reconhecimento do ouvinte com a própria vida e com o próprio tempo.

Esta e outras composições, como aquela do "apelido carinhoso", se inscrevem em um espectro mais amplo da música brasileira. São canções passionais, que pelo canto materializam a carência amorosa, sentimento comum a qualquer um.

Particularmente, sou grande admirador da música passional, puxando lá de Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Cartola, passando por Roberto Carlos, sem deixar de lado Odair José e Reginaldo Rossi. Chico Buarque é grande compositor de músicas passionais. Caetano as interpreta como poucos, vide o sucesso em sua voz de faixas como "Sonhos" e "Sozinho", ambas do compositor dito brega Peninha.
O jeito de compor e de cantar é variável, tem pra tudo quanto é gosto. Mas no fundo o que se evoca é a mesma coisa, a dor de amor, o desejo por aquilo que não se tem.

Dar ouvidos a estas canções me levou a perceber como fui formado por canções que ouvi sem querer. Na década de 1980, quando criança, as audições individuais eram bem menos comuns, como fazemos hoje pela via do próprio celular. Se quisesse escolher a música a ser ouvida, tinha que comprar o disco ou gravar uma fita cassete.

Ouvíamos quem ia nos programas de TV, o que tocava no rádio, o que rodava na vizinhança e nas festanças locais. Eu comemorava quando o Chacrinha chamava os Titãs, e quando o Lulu Santos aparecia no programa da Xuxa pra cantar aquele hit da novela, sorriso no rosto e LP nos braços. E ali, no miolo de Minas, não tinha como não ouvir muito João Mineiro & Marciano, Milionário & José Rico, Tonico & Tinoco, Chitãozinho & Xororó. Todos estes fizeram parte da minha educação sentimental e compõem a trilha sonora da minha memória afetiva.

Nas ruas do bairro Santa Mônica, nem preciso evocar esta memória. Ela brota de além-muros. Ouvidos não têm paredes. Desfaço a ilusão de que escuto apenas aquilo que escolho. Tento compreender o que me dizem as canções que você não fez pra mim, mas que ouvi sem querer.
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