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18/12/2018 às 08h45min - Atualizada em 18/12/2018 às 08h45min

O Guarda-roupa mágico

NANDO LOPES
Peço licença ao escritor literário irlandês Clive Staples Lewis e defendo que todo guarda-roupa é mágico. Embora nem todos nos levem a Nárnia ou alguma outra Pasárgada pretendida, ao revistar o mundo latente do nosso roupeiro pessoal, a viagem é em outra direção: para o interior das memórias embaraçadas no tempo, um calabouço repleto de objetos em desalinho e com provas cabais das nossas distrações.

De quando em vez, abro as portas do guarda-roupa em meu quarto, encontro tantas peças de vestuário, mas já não me encontro mais. Tantos trajes misturados em desarranjo, amarrotados, ostentando cores e formas suspeitas, parecem mesmo que nada mais combina por ali. Incomodado com tanto disparate, resolvo tirar tudo para fora do roupeiro: calças, camisetas, camisas, cintos e calçados saem dos seus cantos de comodidade. Deixo tudo respirar do lado de fora, embora quem precise de novos ares, distante de tanta bagunça, sou eu.

Retiro as gavetas e, por detrás de onde elas estavam, encontro peças órfãs escondidas no espaço do gaveteiro, presas entre os trilhos. Afinal, porque essas vestes abandonam as gavetas, onde elas repousavam dobradas, escapam das suas moradias confortáveis indo abrigarem no fundo de um gaveteiro? De certo, algumas peças não são dadas as regras, a logística, preferem desenturmar e traçar o próprio destino.

Angustiado, resolvo colocar tudo em ordem e rememoro, ao sobrar um pé de meia azul em minhas mãos: por onde andarás o seu par que já não vejo há algum tempo? Se juntos, as meias formando um par parecem perfeitas, um belo casal, solitárias elas já não encaixam na rotina que não é dada a incompatibilidades de objetos fragmentados. Na linha do tempo, seres e objetos estão vulneráveis a se encontrar e depois se perder, até caírem no esquecimento, em um canto qualquer.

Cansado de empreender tantas buscas inglórias, desfaço da meia órfã e prontifico a definir o que farei com as peças que deixam os meus olhos nostálgicos. Avisto algumas roupas que já não ajustam mais as medidas do meu corpo ou que parecem não encaixar com novos rumos que a minha vida seguiu.  Cada artigo que guardo revela um pouco dos lugares onde estive e os momentos vividos. Lembro que usei esta camisa no dia da minha formatura e guardo-a ali, como testemunha de um episódio célebre e fugaz, que se perdeu nas tessituras amarrotadas do tempo. Adorno como se a peça fosse um troféu.

Fatigado pelas aporias do tempo, desconfio que o meu guarda-roupa mágico seja mais dado aos desatinos da memória, do que ao encanto dos mundos fantásticos em que estrelas dançam no céu ou, quem sabe, a mãe d’agua conta histórias. Talvez rememorar tanta vida apegando aos vestígios do que já se foi, também seja um modo de se entorpecer em paisagens exuberantes. Cenários memoráveis que no dia a dia se desfez, mas que por algum motivo mantemos guardados como se eles fossem amuletos. Objetos à espera do “vai que um dia eu preciso” ou do “quem sabe um dia eu vou usar”. Aguardando dias que nunca vão se repetir ou chegar.

A memória tem por hábito retocar os bons momentos que se foi com tinta e pincel. Já o guarda-roupa, imitando a vida, também prescinde de novos espaços e é preciso rever a necessidade de manter tantos objetos que ficam ali guardados, mas que já não me servem mais. Roupas que hoje já não condizem com minhas medidas, com a minha trajetória, mas que podem encaixar perfeitamente no corpo e na história de outras pessoas. Conquanto a vida assim como o guarda-roupa prescinda novos espaços para arejar e viver outras coisas. Quem sabe reger a arte do desapego.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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