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13/12/2018 às 08h38min - Atualizada em 13/12/2018 às 08h38min

A mulher

IVONE GOMES DE ASSIS
“Ó abre alas, que eu quero passar!”. Foi com essa marchinha que Chiquinha Gonzaga, no início do século XX, despretensiosamente, caiu no gosto do público carnavalesco e, de certo modo, despertou, na mulher artista, em geral, o anseio pela liberdade de criação, enquanto profissional.

Contemporâneas de Chiquinha, como as escritoras Nísia Floresta, Josephina Alvares de Azevedo, Maria Ignez Sabino, as artistas plásticas Georgina de Albuquerque, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e outras tantas, foram mulheres que fizeram história, dentro de seus ideais, mudando o “rumo das velas” e se tornando fontes de pesquisa. No campo intelectual, elas deram identidade à mulher, graças à sua coragem.

Carolina Maria de Jesus (a Bitita), uma afro-brasileira, nascida em Sacramento (MG), quando pequena, perguntou: “Mãe, eu sou bicho ou gente?”. Na favela, em São Paulo, escreveu, dentre vários livros, “Quarto de despejo”, cuja venda foi de 10 mil cópias em três dias. Com três meses, as vendas já apontavam para quase 90 mil exemplares.

Eu poderia citar milhares de outras mulheres que fizeram proeza no universo intelectual feminino, mas, como escreveu Clarice Lispector, “É com uma garra trêmula que seguramos o cetro do poder”.

Ora, desde que o mundo é mundo, mulheres perderam (e perdem) a vida em prol de sua luta, em busca de uma configuração social que forme um mundo cultural, igualitário e humano mais coerente e justo. Porém, a igualdade ofende.

Todos os dias, centenas de mulheres são violentadas de algum modo; punidas por “crimes brutais” como “ser mãe”, “ser esposa”, “ser honesta”, “ser trabalhadora”, “ser independente”, “ser mulher”, ser... Ser.

A fogueira e a fornalha consumiram milhares de mulheres inocentes; outras milhares, dia a dia, vão sendo deletadas por maridos, namorados, insanos em geral, porque há falhas, em especial, na consciência humana, na educação de cada um. A mulher, geralmente, divide seu tempo entre família, trabalho, expectativas e coragem, rompendo barreiras quase intransponíveis. Mas, a insensatez faz com que isso não baste.

Na incompreensão dessa demência humana, em que muito se fala em direitos, mas pouco se vê em mudanças; em que mulheres geram a vida de criaturas que crescem, que se esquecem de onde vieram e, embasados em pensamentos sórdidos, apoiados pelo ego e pela impunidade, sugam o fôlego da companheira ou outras, escolhi o poema de Drummond (1980), para ilustrar: “Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. Todos os filmes norte-americanos são iguais. Todos os filmes de todos os países são iguais. Todos os best-sellers são iguais. Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.

Todos os partidos políticos são iguais. Todas as mulheres que andam na moda são iguais. Todas as experiências de sexo são iguais. Todos os sonetos [...] são iguais [...]. Todas as guerras do mundo são iguais. Todas as fomes são iguais. Todos os amores, iguais iguais iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima. Todas as criações da natureza são iguais. Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho ímpar.

Ainda digerindo tal poema, leio um trecho de uma entrevista realizada por Michael Pollak, em “A gestão do indizível”, sobre mulheres sobreviventes do campo de concentração Auschwitz-Birkenau. Nele, Ruth A. declara: “Não, eu não poderia odiar. Eu penso somente: pobre humanidade. E também: eu prefiro mil vezes estar entre os perseguidos que entre os perseguidores. Mas, apesar de tudo, eu não posso condenar ninguém, porque eu me coloco sempre esta questão: como eu teria me comportado no lugar dos outros? Eu não sei. Não se pode saber”.

Assim, o medo e a ignorância vão consumindo pessoas, silenciosamente, enterradas no esquecimento. Resta-nos dizer: “Ó abre alas, que eu quero passar!”.
 
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