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01/10/2017 às 05h15min - Atualizada em 01/10/2017 às 05h15min

A arte, os artistas e a liberdade de expressão

ALEXANDRE HENRY ALVES* | COLUNISTA

Nos últimos meses, tivemos inúmeras discussões sobre o que é arte e qual é o limite da liberdade de expressão dos artistas. Em julho, Maikon K. foi preso pela polícia militar do Distrito Federal durante uma performance em frente ao Museu Nacional da República. Em “DNA de DAN”, Maikon K. fica dentro de uma bolha, com o corpo nu impregnado por uma substância que vai secando aos poucos, para então descascar enquanto ele executa movimentos corporais. Em Jundiaí, agora em setembro, uma decisão judicial proibiu a encenação de uma peça em que Jesus era representado por uma pessoa transgênero. No Sul, há pouco tempo, uma exposição foi cancelada após o patrocinador decidir nesse sentido, pressionado por reclamações quanto ao conteúdo.

A questão é complexa, especialmente nestes tempos em que há um embate gigantesco entre liberais e conservadores. O principal ponto de discórdia é sobre o que é arte e qual é o limite da liberdade de expressão. Para os liberais, em regra, a arte não deve ter limites e não está restrita às formas tradicionalmente consumidas pela sociedade. Assim, performances mais heterodoxas, por exemplo, não podem ser questionadas quanto à sua natureza artística. Para os conservadores, ao menos a grande maioria deles, o conceito de arte é muito mais restrito.

O que é arte? Eu não vou responder, sinceramente, pois essa é uma pergunta que pode ter dezenas de respostas distintas. Só o Houaiss traz mais de vinte definições para a palavra. Além disso, estou certo de que a definição de arte vai desaguar, ainda que se tente criar um conceito universal e academicamente aceito, na opinião de cada ser humano. De nada adianta os curadores de um grande museu, como o Louvre, dizerem que determinada obra ou expressão humana é arte, se você, a partir de suas experiências, de sua visão do mundo, de sua fé religiosa (ou ausência dela), achar que aquilo, definitivamente, não é arte.

É aí que reside a grande dificuldade em conciliar liberdade de expressão artística com outros direitos, como a liberdade religiosa, a preservação da criança e do adolescente etc. A questão fica ainda mais complicada a partir do momento em que você traz essa discussão para uma sociedade na qual a maioria das pessoas nunca passou na porta de um museu. Eu me refiro à porta do museu mesmo, não ao seu interior. No Brasil, mesmo a arte formal, aquela reconhecida por liberais e conservadores como tal, não alcança um décimo da população. A música, e mesmo assim só aquela considerada como popular, costuma ser a única expressão artística a atingir toda a sociedade brasileira. Teatro? Poucos já foram a uma peça. Quadros e esculturas? Menos ainda. E assim acontece com tudo o que se convencionou chamar de arte.

Essa realidade torna tudo mais difícil e ajuda a que expressões artísticas mais heterodoxas e inovadoras não sejam reconhecidas como tal. Não só o heterodoxo ou inovador, mas também aquilo que, aos olhos da maioria das pessoas, não representa o belo. Sim, porque o belo é associado por muita gente à arte. Por belo, entenda-se aquilo que é esteticamente agradável aos sentidos: o que apraz principalmente os meus olhos e o meu ouvido. Em consequência, tudo o que não é belo, nessa perspectiva, deixa de ser considerado arte por grande parte da população. Para piorar, há a questão religiosa, pois um país de tradição cristã tende a ver com desconfiança tudo aquilo que expõe o corpo, as mazelas humanas ou o que não se encaixa na visão da sociedade tradicional.

A discussão é longa. Eu não quero aqui dizer que uma performance em que várias pessoas andando em círculo, enfiando o dedo no ânus de quem está à frente, como vimos há algum tempo, seja arte. Nem quero dizer que não seja. O que eu quero mostrar é que o baixíssimo contato de nosso povo com produções artísticas, mesmo aquelas que qualquer um sempre vai considerar como arte, representa um limitador na nossa capacidade de diferenciação entre a expressão artística e o mero exibicionismo. Formamos nossas opiniões com base no “achismo”, nas nossas preferências políticas e nas nossas experiências religiosas ou agnósticas, quando deveríamos formar nossa opinião com base na história da arte e no contato de cada um, ao longo de sua vida, com expressões humanas relacionadas, devida ou indevidamente, à arte. Enquanto essa realidade se mantiver, continuaremos tendo prisões de artistas e proibições de exposições ou peças baseadas não em critérios mais claros, mas em convicções pessoais desconectadas de um conhecimento maior do que é a arte.

(*) Juiz Federal e Escritor - www.dedodeprosa.com

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