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23/05/2024 às 08h00min - Atualizada em 23/05/2024 às 08h00min

Infância, trauma e fragmentos de futuro

Por: Saulo Magalhães, professor de Psicologia da Una Uberlândia

A infância enquanto fase do ciclo vital, é sinônimo de vida em pleno desenvolvimento. É um convite incessante às brincadeiras sem fim, a aventura perene de subir em árvores, explorar lugares fazendo dos mesmos um trampolim à imaginação. É aproveitar cada oportunidade para degustar doces e mais doces, sem culpa e receio do que virá amanhã. Um tempo único e intenso, que deveria ser por direito, exclusivo a ser vivido assim. Mas a realidade de muitas crianças brasileiras tem sido bem diferente: o sinônimo vida tem cedido espaço ao fenômeno da violência e do abuso sexual.

 

A violência sexual contra crianças e adolescentes é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN) como o envolvimento de uma criança ou adolescente em atividade sexual não compreendida totalmente, sendo esses incapazes de dar consentimento, ou para a qual não estão preparados devido a seu estágio desenvolvimental.

 

Em Maio, mês que é conhecido como “Maio Laranja” temos uma mobilização nacional para conscientizar a sociedade sobre a realidade da violência sexual contra crianças. Somos lembrados e confrontados com a realidade de muitas crianças que fazem parte dessa estatística: a cada 1 hora, em média 3 crianças são abusadas sexualmente no Brasil, onde cerca de 51% possui entre 1 e 5 anos de idade.

 

O Ministério da Saúde no Brasil, em um documento denominado “Notificação de maus- tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde” preconiza que a dinâmica da violência sexual contra crianças é entendida como uma prática que visa estimular sexualmente as vítimas ou utilizá-las para obtenção de satisfação sexual (dos perpetradores). Tal violência sexual pode variar desde atos nos quais não há contato físico, até diferentes tipos de ações que incluem contato físico com ou sem penetração. Inclui, ainda, situações de exploração sexual visando o lucro, tais como a exploração sexual e a pornografia. No final da década de 1990, a OMS reconheceu a violência sexual, bem como demais tipos de violência contra crianças e adolescentes, como um problema de saúde pública devido à sua prevalência, às suas consequências e aos gastos econômicos que acarretava.

 

Enquanto sociedade, somos chamados a atenção e a conscientização que esse problema não é do outro, mas de todos nós. E pensar na realidade desses pequeninos que são vítimas de abusadores perversos, parece ser da ordem do dia, pois há aqui uma urgência de que se resgate o sinônimo de vida perdida diante do trauma. Trauma é a expressão adequada para caracterizar o resultado gerado por essa violência. Uma marca que fica registrada na existência de uma criança e que a acompanhará ao longo de sua vida. A dinâmica desse trauma poderá desafiar no futuro áreas como autoestima, relações interpessoais, enfrentamento de frustrações e até mesmo a capacidade de planejar, com otimismo, o futuro. No momento pós-traumático, ou seja, os primeiros meses após o ocorrido, um misto de emoções envolvendo culpa, medo e vergonha podem invadir a psique de uma criança.

 

Uma mudança brusca e repentina no comportamento dessa criança pode ocorrer. Ela pode se tornar mais introvertida, não querer sair de casa para brincar, ter desafios no seu processo de aprendizagem e ainda ter grandes comprometimentos com o sono. Nesse sentido, não é raro que pessoas vítimas de violência sexual desenvolvam problemas psíquicos, depressão e sejam invadidas por ideações suicidas. As consequências negativas podem perdurar ao longo de toda a vida dos indivíduos.

 

O enfrentamento dessa realidade precisa ser feito por todos. A responsabilidade pela infância não deve ser isolada. Como sociedade somos chamados a nos posicionar frente a este cenário. A partir de uma Filosofia do Cuidado, as denúncias feitas pelo cidadão brasileiro serão peças chaves para proteção da criança. O Disque Direitos Humanos - Disque 100, é um serviço de utilidade pública do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, destinado a receber demandas relativas a violações de Direitos Humanos, especialmente as que atingem populações em situação de vulnerabilidade social.

 

O acolhimento daqueles que foram vítimas dessa violência, convoca os profissionais de saúde mental a ocupar esse espaço. Dentre estes, os psicólogos representam a linha de frente, a partir de uma escuta qualificada, acolhendo e acompanhando os sinais- sintomas que uma criança terá que encarar como resultado dessa violência. As intervenções propostas por esses profissionais podem ter um efeito terapêutico crucial para elaborar essa dor e ressignificar a realidade psíquica dessa infância. Quero concluir essa reflexão parafraseando Rubem Alves (Um poeta que me ensinou muito sobre a infância), “enquanto a sociedade feliz não chega que haja pelo menos fragmento de futuro em que a alegria é servida como sacramento para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente”. Que o Maio Laranja seja ele mesmo um fragmento do futuro.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 

 

 

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