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18/10/2024 às 08h00min - Atualizada em 18/10/2024 às 08h00min

Corujas

WILLIAM H STUTZ
Tenho fascínio por animais estigmatizados. Carregam em si mitos e lendas. Não bastassem escorpiões, morcegos serpentes e aranhas, que fizeram parte de meus dias de trabalho durante quase uma vida, tenho paixão por corujas. Talvez pelo fato de eu mesmo, de vez em quando, ser um outsider. As mães-coruja, estas eu admiro com reservas, pois, normalmente, são dominadoras e acabam criando pestinhas. Cabem exceções. Jamais incorreria em injusta generalização. Pode-se muito bem ser mãe ou pai-coruja no amor, no cuidado, no carinho, sem deixar filho com manhas e sem norte. Pensando bem, as que estragam seus filhos são minorias. 

Mas, minha paixão é pelas corujas. Estas aves de rapina imponentes que, além de seres viventes especiais, carregam o peso de forte simbologia, perdendo para poucos representantes do reino animal. Em minhas redes sociais, posto fotos, lá estão sempre presentes. Em meus poemas e escritos as reverencio com constância.  Talvez percam para escorpiões e insetos, com suas cores, formas e belezas escondidas, às vezes, só detectadas por lentes macro, capazes de expor caprichos da natureza em detalhes deslumbrantes.

Como mascotes da divindade grega Athena, corujas conquistaram título de símbolo da sabedoria. Além disso, meu quase homônimo Willian Meng – diferença de uma letra meu William é com M, o dele N – nos conta: “Os gregos consideravam a noite como o momento do pensamento filosófico e da revelação intelectual e a coruja, por ser uma ave noturna, acabou representando essa busca pelo saber.” Para outros tantos, coruja é sinal de mau agouro, de azar e morte. Pio de coruja então, morte certa por perto. Na idade média, eram vistas como bruxas disfarçadas e, quando davam o azar de serem capturadas, eram amarradas e deixadas presas sem água ou alimento, para morrer em sofrimento.

Cada cultura via a coruja de uma maneira. Os romanos como sinal de derrota em batalha, já os gregos prenunciavam vitórias quando na sua presença. Não existe caracterização de Merlin sem poleiro dela em seu laboratório. Edwiges era o nome da coruja de Harry Potter, que de ruim nada tinha.

Gosto de corujas. Seu canto acalma e embalou anos a fio o sono de meus filhos. Toda noite, minúscula Caburé pousou no telhado de casa e lá fica a piar horas a fio. O dia que não vinha ficava apreensivo com seu bem-estar. Sinal de chuva forte ou frio bravo. Ganho tempo precioso observando corujas buraqueiras cuidando de toca e cria. As acompanho à caça. Certeiras no voo, dificilmente um rato foge de seu ataque. Quando em vez, vejo uma tomando couro de passarinho miúdo em defesa de seus próprios pequeninos. 

Certa feita, durante captura de escorpiões, descobri toca de coruja em cemitério, jazido abandonado. Quase me matou de susto. Cabeça baixa, cuidando de meu trabalho. Quando levantei o olhar, lá estava a palmo e meio de meu nariz. Arrepiada, asas abertas se fazendo o dobro em tamanho. Cai sentado, coração a mil. Depois, recuperado, apreciei e fotografei a bela em plenitude.

Há algo fascinante em observar os seres que se escondem nas sombras, como as corujas, criaturas de hábito noturno e, de certa forma, distantes dos olhares cotidianos. Talvez seja essa distância que permite a elas preservarem seus mistérios, carregando sobre si o peso de simbolismos que variações entre sabedoria e presságios sombrios, dependendo de quem observa. Na minha experiência, no entanto, a relação com as corujas sempre foi de admiração. Quando vejo uma, sinto como se estivesse na presença de algo ancestral, algo que transcende. 

Lembro-me de um momento em que, depois de um longo dia de trabalho no campo, parei por alguns minutos à beira de um pasto. O crepúsculo se espalhava como um véu sobre a paisagem e, entre as últimas luzes do dia e a chegada tímida da noite, uma coruja buraqueira emergiu da toca. 

Como que movida por um instinto sagrado, deslizou pelo ar com graça e precisão, sem emitir um único som. Era como se aquele momento estivesse reservado apenas para ela, uma dança silenciosa entre predadora e presa, onde a perfeição do voo não era perturbação, mas parte da ordem natural das coisas.

Observando, pensei sobre o quanto nossa própria humanidade poderia se beneficiar do aprendizado com esses animais. Em vez de julgá-los pelo que representam em diferentes culturas, devemos absorver as lições mais simples que eles nos ensinam: como a importância de se mover com discrição, de ser vigilante no momento certo, de proteger o que é seu, mas sem alarde. O silêncio, muitas vezes, diz mais do que qualquer palavra, assim como as corujas parecem fazer mais no silêncio do que muitos de nós com o barulho incessante de nossas rotinas. Somos seres barulhentos por natureza, um horror.

Elas são, em essência, uma metáfora viva para o que eu acredito que falta em muitos de nós. Em tempos em que tudo precisa ser determinado, exposto, divulgado, elas nos lembram de que existe beleza na quietude, sabedoria no olhar atento e, sobretudo, força na paciência. Afinal, a caça da coruja é resultado de um planejamento preciso, uma esperança que pode durar horas, mas que raramente falha.

Esses pequenos momentos, em que cruzamos caminhos com corujas ou outros animais estigmatizados, me trazem à mente a ideia de que talvez a verdadeira sabedoria resida na capacidade de perceber o que está além do óbvio. Talvez seja por isso que elas me fascinam tanto, pelo seu equilíbrio entre presença e mistério, força e discrição. Um equilíbrio que, confesso, tento buscar em minha própria vida, (quase sempre sem sucesso obviamente).

Discretas, silenciosas, fiéis. Assim são as corujas. A quem possa interessar: no Brasil, existem 24 espécies de corujas, muitas ameaçadas. Não carece nem apontar culpados pois já os (nos) conhecemos. Pesquisadores em corujas brasileiras relatam: “Um casal de corujas-buraqueiras consome de 12,3 mil a 26,2 mil insetos, e de 540 a 1,1 mil ratos por ano”. Muitos deveriam se espelhar nas corujas. Mais discrição, atenção, préstimo e lealdade quesitos nobres de um animal de penas, mas que em muito engrandeceriam os humanos tão vazios de tais tributos, infelizmente.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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