Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
28/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 28/06/2024 às 08h00min

Abstração

WILLIAM H STUTZ
Orvalho da manhã em lírio do campo.
No campo procurando bichos, acha-se tesouros breves
basta nesga de sol para derreter tamanha beleza.
Aranha espera presa em teia por sua presa. Quem mais atado aos caprichos da vida está? A morte gerando vida. Preia prece sem ressonância, retorno, ecoar. Nula repercussão.
Tributo amargo de um existir frágil.
Perpetuação de um sob a carcaça de outro. Insano jogo sem vencedores, sem derrotados.
A quântica energia da eternidade se fazendo presente a cada passo.
Festa do sobreviver em chamego balançar de pura seda
Ode à vida em diminuto mundo de jardim, pouco visto, passa batido.
Tropeçamos em vida como gigantes insensíveis, passamos por ela
pisoteamos, pisoteados.
Cada agrado de bom grado recebo. Careço dengo e chamego cafuné. De dengue e febres outras, farto estou.
 
Rifa de burro
Me contaram dia desses outra vez, a história da rifa do burro morto. História antiga, já sem dono, cada um de um jeito conta. Talvez muitos a conheçam. Reconto aqui. Pode ser novidade para outros tantos.
Aconteceu, dizem, lá pelas bandas de Estrela da Barra, hoje Vila Triângulo que fica de cá do rio, em Minas. De lá está Santa Albertina. Travessia só de balsa.
Tarde à toa de domingo moçada a passear sem muito o que fazer, toparam com fazendeiro arrastando burro morto para enterrar. Logo um mais chegado às espertezas de dinheiro fácil ganhar, pediu o burro dado.
O fazendeiro velhaco e desconfiado perguntou o motivo da querência.
- Rifar o bicho só isso. Fazemos cem números a vinte contos cada e corremos a rifa do burro.
- Mas o bicho tá morto moleque, você acredita que ninguém vai reclamar?
- Reclamar vai, mas só aquele que ganhar o sorteio. Ai a gente devolve o dinheiro dele e pronto. Resmunga um maldizer da pouca sorte se dá por justiçado satisfeito. E nós ainda ficamos com bons trocados para o fim de semana que vem.
E assim se fez. Mineirice.
 
Farrapo humano
Discreto por necessidade, abandonado, sempre só
fez da vida tortuoso caminho, largou tudo e todos
das paixões ficou apenas miserável e fino pó.
Não adiantava, nem acurada perseverança
lutou com garras aduncas de pássaro de rapina
mas nada restava, nenhuma ligeira esperança.
Antiga pertinácia, substituída pelo mais puro e destruidor medo,
já não buscava refúgio seguro
a sorte a escorrer pelas mãos, não mais fazia da vida segredo.
Entregue a torpe destino a alma em chamas coração em frangalhos
resignado assistia o correr do tempo
na pele carcomida invisíveis, mas doloridos bugalhos
Nada restava fazer senão mergulhar em sonhos
porém por mais que tentasse não conseguia os olhos fechar
quando assim o fazia apenas fantasmas medonhos
O sono era martírio pleno e cochilo tortura
entre trapos e tristes lembranças
Jogou-se em gran finale, no inexpugnável poço da loucura.
 
Guarda-roupas
Em meu guarda-roupas de tudo um pouco,
guarda lembranças, guarda cobranças
guarda exagerados segredos loucos.
 
Meu guarda-roupas, meu armário
tão confuso, organizada bagunça, retrato em carrara de minha alma, meus pensamentos, meus desejos.
um particular santuário.
 
Entre botinas e rimas, guarda prosa, guarda verso, esconde retalhos.
às vezes claros às vezes escuros
misturam-se em doce harmonia alhos e bugalhos
 
Meu armário, guarda sim meus mais loucos segredos,
mas bem lá no fundo entre livros, meias, cintos e canivetes,
guarda impregnados nas roupas, porém escondidos alguns de meus maiores medos.
 
Abstração
Quem a visse de longe a daria por possuída ou coisa do gênero.
Descalça e em desenfreada carreira cruzava o pasto de um lado para outro. Não se dava conta e nem se incomodava com as enormes manchas brancas espalhadas no meio do colonião, e ao que se via os gigantes nelores apesar de costumeiramente mal-humorados, também não lhe davam a mínima. Acompanhavam com olhos bovinamente mansos aquela correria. Apenas uma ou outra parida se levantava com a cria ao pé e a seguia com as vistas e o corpo, nunca lhe dando as costas, instinto, protegendo filhote. Nenhum nela investiu.
 
Dois quero-queros levantaram vôo aos gritos bem perto dela o que a alegrou mais ainda, juntando à sua carreira agudos sons a imitar as aves.
 
De tempos em tempos parava junto à grande vasca que servia de bebedouro para o gado e lá mergulhava a cabeça com gosto. Em alegre arroubo sacudia o enorme cabelo preto molhado e aos pinotes continuava sua dança de felicidade. O vento varria-lhe a face e o doce cheiro do mato lhe dava mais e mais energia para correr e pular. Borboletas coloridas espalhavam-se em frenesi à sua passagem. 
 
Preás afobados se entocavam medrosos enquanto perdizes em assobiados voos abriam caminho. Cambalhotas no capim. Se jogou de vez no verde não se importando em nada se havia ou não carrapatos para lhe subirem às vestes e à pele. Descansando observava formigas cortadeiras em militar desfile a empunhar verdes bandeiras de folhas. O ir e vir dos bichinhos quase a adormeceu. Dormir de jeito algum.
 
Caminhou arrastando a ponta dos dedos dos pés pelo trilheiro de gado. Nas mãos levava um enorme galho de mama-cadela com o qual cutucava tudo que era moita por onde passava, aprendizado, podia ter cobra. Ao longe pôs atenção em goiabeira carregada, vista apurada de gavião real. Nova carreira e em segundos estava a balançar em fortes galhos malhados e a saborear o doce-azedo das frutas ainda de vez. Um marimbondo como que a avisar passou zunindo próximo à sua cabeça. Tempo só de ligeiro desviar do bicho e com o canto dos olhos descobrir a imensa cachopa, morada deles. Com cuidado infantil desceu da árvore, caçou rumo de casa. Sentiu cheiro de fogão de lenha e de comida. 
 
Avistou lá embaixo um carro a levantar poeira na estrada também rumando para lá. Riu com estranha alegria e num galope só buscou a mesma direção, eram os primos e amigo de primos a chegarem da cidade, vinham de longe. Nem se importando com sua aparência de leitoinha de chiqueiro de tão suja, com o coração disparado em aflição e pressa deslizou como o próprio vento em direção aos que chegavam. Mal sabia que estava prestes a conhecer seu primeiro e maior amor e que tudo em sua vida de transformaria para sempre.
 
*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90