Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
04/06/2024 às 08h00min - Atualizada em 04/06/2024 às 08h00min

Uma curiosa personagem do Século XIX

ANTÔNIO PEREIRA
Você sabe quem foi Pedro Thomaz de Aquino? Não sabe. Só a família deve saber alguma coisa dessa personagem exótica, quem sabe, típica dos velhos tempos da velha Uberabinha.

Morava ali para os lados do corgo Liso onde tinha suas terras e suas atividades. Como homem de posses medianas, Pedro tinha que saber de tudo um pouco: plantava, colhia, criava, guardava os excedentes na tulha para os anos seguintes, era bom marceneiro, devia saber alguma coisa do ofício de pedreiro. 

Tinha seu carro de bois com o qual ia, de tempos em tempos, a Uberaba vender toicinho defumado, cobertas de algodão cru, queijos e comprar sal, chita (que os tecidos teados por aqui só serviam para calças masculinas) e ferramentas, coisas de marceneiro, mais foice, machado, enxada. Era aquele tempão na estrada.

Nessas viagens esticadas, embora não fossem muito longas, era comum quebrar uma canga, um cambão. O carreiro liberava os bois, ia no mato, cortava uma sucupira e, ali mesmo, lavrava o pau e fazia a peça substituta. Pelo menos, com o Pedro Thomaz era assim. Ele já levava as ferramentas para essas eventualidades.

Certa vez, ele anunciou em casa que ia a Uberaba. Sua filha colocou ovos para chocar, criou os pintinhos, vendeu os frangos, renovou o criame, juntou seus cobres e pediu ao pai que lhe trouxesse uma máquina de costura. Que era a mão naqueles tempos. As coisas eram assim, naturais, sem tempo, sem pressa.

Pedro foi um dos que baldearam, da Mogiana até as margens do rio Paranaíba, nas proximidades de Santa Rita (Itumbiara), os ferros para a construção da ponte Afonso Pena. Ele levou uma bobina de cabo de aço que pesava uma tonelada no seu carro de bois. Foram meses de viagem. Tempos bons, sem pressa, sem tempo. Os fatos fluíam naturalmente.

Foi ele quem importou da França a primeira imagem de Nossa Senhora da Abadia que doou para a matriz de Nossa Senhora do Carmo, onde se tornou reverenciada regionalmente. Seus carros de bois transportavam mercadorias que chegavam pela Mogiana para várias corrutelas da região.

Mas o Pedro não era um homem simples. Era brincalhão, mulherengo, tinha uma filharada fora de casa. Além dessa extroversão, ele tinha pressentimentos estranhos, coisa de premonição, ou, pelo menos, de pressentir, na hora, o que estava acontecendo ou ia acontecer daí a pouco.

Uma vez, ele chamou sua mulher e disse-lhe que precisava ir buscar a “menina”. A velha, d. Leonor de Oliveira, era bondosa, humilde, tolerante. Mas que menina seria essa?

A “menina” (uma de suas filhas fora do matrimônio), ele explicava, e ela ouvia sem dizer sim nem não, estava passando por dificuldades. Nem roupa pra vestir tinha. Sem saber a que menina se referia, a velha concordou: pois que fosse buscar a menina.

Pedro montou no tordilho e foi.

Chegou na casa da “menina” e viu o estado lastimável em que a família estava.

- Vim buscar a menina, anunciou.

Ela era novinha ainda. Tinha um irmão rapazinho já. E o maninho não aceitou a interferência do Pedro.

- Ninguém vai levar a Luíza, não!

E o Pedro:

- Ela não está bem. Vocês não têm condições de cuidar dela direitinho. Eu levo e dou toda assistência.

O menino encrespou:

- Se o senhor puser a mão nela, eu te mato!

- E você vai ter coragem de matar o seu pai?

O menino espantou-se e correu os olhos pros lados da mãe. E o Pedro:

- Pergunta pra ela quem é o seu pai.

Passou a mão na menina e levou. A velha cuidou dela que nem se fosse filha. Seus bisnetos mais velhos chegaram a conhecer a “tia” Luíza.

Precavido, Pedro entulhava mantimentos pra mais de ano, sempre. Lá pela última vintena do século dezenove, Uberabinha sofreu uma seca brava. O povo passando necessidade e o Pedro com a tulha cheia mais criações e plantações. 

De vez em quando aparecia alguém no corgo Liso já na beira da fome, pedindo ajutório. A velha mandava que arrancasse uns pés de mandioca e, assim, ia aliviando as dificuldades dos desprevenidos. Virou uma procissão pro corgo Liso.

Pedro deitava cedo. A velha ficava dando um jeito nos trens de cozinha, ou numa coisa e outra antes. Uma noite, quando entrou no quarto, encontrou o Pedro sentado à beira da cama, rezando.

- Quê que foi, Pedro?

- Minha mãe acabou de morrer lá no Araxá e me pediu uma oração.

A velha quedou-se meio espantada olhando o velho. Quando acabou a oração, Pedro se arrumou e avisou:

- Vou pro Araxá.

Montou no tordilho e foi tocando pela noite adentro, exigindo pressa do cavalinho. E foi, e foi. Lá no meio do caminho topou com um velho conhecido que vinha do Araxá pra dar a notícia.

- Uai, Pedro pra onde cê vai com tanta pressa?

- Vou pro Araxá, minha mãe morreu.

O peão quase caiu do cavalo. Pois como é que o Pedro sabia se era ele quem estava levando a notícia? E foram os dois pro Araxá.

Doutra feita, os filhos do Pedro surpreenderam-no fazendo um caixão.

- Uai, pai, o quê que é isso?

- Tô fazendo pra mim.

- Deixa de agouro, pai.

Pedro terminou o caixão, saiu e foi encomendar uma mortalha. Naquele tempo ainda se usava disso para se enterrar um cristão. Quando a mortalha ficou pronta, Pedro experimentou-a na frente de toda a família, todo mundo assustado com aquilo.

Mais uns dois dias, foi ao cemitério, que era ali na atual praça Clarimundo Carneiro. Escolheu um lugar e mandou o coveiro cavar bem fundo.

- Não quero sete palmos. Quero quatorze, senão, daqui uns tempos vocês furam em cima, tiram meus ossos, jogam por aí e põem outro no lugar. Faz com quatorze que eu fico lá no fundinho, ninguém mais mexe comigo.

O coveiro fez. Não demorou nada, nada, morreu o Pedro Thomaz de Aquino, figura curiosa, símbolo de um tempo que não volta mais. E foi enterrado como queria.

Sua lembrança ficou na história das famílias Siquierolli e Santos das quais o Pedro foi um dos patriarcas em Uberabinha.

Fonte: Warner Siquierolli - Nenzinho


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90