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06/04/2024 às 08h00min - Atualizada em 06/04/2024 às 08h00min

Superação: a penitência imutável e quase insuportável da humanidade

SE MANCA!, por Igor Castanheira

SE MANCA!, por Igor Castanheira

O jornalista Igor Castanheira traz seu olhar sobre temas relacionados a inclusão e acessibilidade.

IGOR CASTANHEIRA
Superação, palavra bonita, adoramos utilizá-la para enfatizar uma vitória, comemorar um objetivo alcançado e celebrar uma meta. Eita palavrinha traiçoeira, ela sempre nos força a querer mais, a não estar satisfeito com nada e tem uma imponência boa de pronunciar, principalmente no tempo presente. Senti, só. Eu me supero, que lindo!

A palavra superação é uma saborosa maneira de nos conformar com a dolorosa e difícil padronização de tudo na sociedade. Para me destacar, preciso me superar, demos um significado bonito a uma palavra que é acompanhada do nosso desconhecimento e ignorância. Mas como não gostamos de admitir a nossa falta de inteligência, é melhor criar mecanismos que nos enganam, então vamos sempre nos superar, de preferência com uma dose, moderada ou não de sofrimento, contudo, em alguns contextos, ela ganha uma relevância que nos faz acreditar ser para o bem. Quer ver?

Ela nos gera expectativas desnecessárias, é verdade, mas por conta do peso que ganhou no cotidiano, é compreensível. No âmbito esportivo, ela é amarga para muitos e doce para poucos, afinal valorizamos só quem vence, porém esperamos sempre o próximo Pelé ou Jordan.  

O esporte é desenvolvimento, alto rendimento, eu tenho que compreender que os limites têm que ser superados e precisamos ter referências, não é mesmo? Fomos forçados a acreditar que sim. Pois é, nos inspiramos e lembramos de nomes, que alguém na posição de especialista, que nos induz a concordar com ele ao afirmar repetidas vezes ser o “melhor”.  Olha a contradição: para exaltar alguém como o “melhor” do que o outro, citam números, porém para falar do jogo, explanam: “não podemos focar só nos números” Não se sintam tristes, somos todos influenciados por alguém.

Façam as contas, no esporte, todos querem vencer, por mais que se superem. Posso ser cruel, acredito que menos de 3% ficam satisfeitos com a carreira. A superação sempre nos deixa a sensação de que somos deficientes. Esse sentimento nos obriga a nos superar para acreditarmos que somos melhores.

Boa parte tem que se conformar com o que conseguiu, mas a maioria, no íntimo, se frustra, no entanto, o esportista recebe o apoio e palavras motivadoras de consolo. Isso provoca uma sensação de conforto e alivia o “fracasso”, falando do esporte, especificamente, uma ferramenta que, na teoria, tem o papel de transformar a sociedade, mas ao mesmo tempo provoca a competição e escancara a nossa deficiência.

Estranho, a deficiência ser algo tão ruim e, mesmo assim, ser um termo que define um grupo cada vez maior de pessoas. A nossa superação é eterna! A inclusão se torna uma das utopias da humanidade já consolidada, enquanto isso, seguimos nos superando para camuflar a deficiência do outro, que coloca em mim um peso de uma palavra que ele mesmo busca superar. 

Você pode discordar de mim, dizer que a superação é um estímulo ela tem que ser, mas já pensou no preço que ela cobra? Na verdade, somos obrigados a engolir o que conseguimos e, quem sabe, nos embriagar com um objetivo alcançado, porém a ressaca do dia seguinte nos força a continuar nos superando.

Agora, com o avanço da ciência, a velocidade das informações, a descoberta de novas singularidades e a incapacidade de esconder a pluralidade e a diversidade humana, passamos a criar novos rótulos e desenvolver maneiras para que todos se encaixem em um padrão, obsoleto, analógico, com pouco conhecimento, que conseguia controlar e levar a massa a uma direção que alguns determinavam e afirmavam ser a correta.

Esclareço aos desavisados, não falo somente da política, falo do nosso desenvolvimento como seres humanos, do acesso a informação, do ambiente limitado e a visão que nos era imposta do externo. Nesse contexto, a superação já se achava um máximo.

Imagine agora que todos gritam ao mesmo tempo, pedem socorro, falam para o mundo ouvir, mas não são escutados e, ao invés de terem ajuda, recebem uma medicação e engolem uma nova teoria. 

O mundo irá lhe aplaudir se você conseguir se superar ou, quem gosta de você, poderá chorar, mas por pouco tempo, pois a vida o fará superar. Afinal, você não resistiu à pressão e não conseguiu se superar. 

Enquanto nos achamos inteligentes, a superação nos pega pela nossa incapacidade de aceitar o novo, pela dificuldade de compreender que o mundo mudou e que os padrões que tínhamos devem mudar na mesma velocidade, senão não iremos superar este atual momento.

Cansei! Vejo uma criança singular na internet e logo vem! “Você não terá o direito de reclamar da vida hoje” ou “agradeça a vida”. Também tem, “vejo o exemplo”! Pra escutar, “ele se superou”, com sorte, a gente ganha o único adjetivo, que assim como a palavra inclusão, vem junto com o nosso manual, esforçado.

Esse tipo de conotação é comum e visto como “sensível e humana”. E você pode dar o nome de uma teoria para essa conotação, a questão não é a nomenclatura. Sim, a nossa capacidade de enxergar no outro, sempre algo que acreditamos e divulgamos aos quatro ventos, por meio de uma crença imutável, que a condição de alguém é inferior à nossa. E o pior, vendo como o outro é inserido na sociedade, é que encontramos motivos para nos superar, mas para isso, obrigatoriamente, diminuímos o outro.

A superação não é um objetivo, nem uma qualidade, é uma necessidade, praticamente uma penitência que a sociedade me impõe. Posso desistir, ela não irá reclamar, somente lamentar que eu não me superei, afirmando que sou acomodado ou incapaz, talvez como consolação digam, ao menos tentou.

A superação serve de consolo para muitos que não a compreendem. Assim massageiam o ego, alimentam a ignorância e eu, assim como quase todo mundo, tem que se superar e encontrar em alguns exemplos “vitoriosos” algum estímulo. 

Reforçando que esse modelo ideal de “perfeição”, também há sequelas Elas são adquiridas no processo até a chegada ao olimpo e não se preocupe, seremos julgados por alguém. E, com esses exemplos imperfeitos que negam a singularidade e valorizam o sofrimento, eu tenho que me inspirar e, claro, superá-los. 

Deste modo, deixo outro questionamento: como conquistar a igualdade com o nosso espírito de competição sendo sempre alimentado e estimulado com a venenosa superação?  A igualdade é uma teoria defendida e difundida há milhões de anos e nunca passou de teoria, na verdade, é a maior utopia que inventamos. 

Agora temos milhões de teorias, sem nenhum consenso cultural para formar a estrutura de um povo. O resultado? Agora está solto, perdido e completamente avulso, cada um se superando sozinho. Nos seguramos na fé, no abstrato e em uma crença que nos move, mas nos enlouquece.

A superação nos faz correr atrás de algo inalcançável, a igualdade e a inclusão, fazemos dela uma muleta de motivação e uma arma poderosa que não nos deixa sair do lugar. Superação você nos dominou e agora nos leva a destruição e, de uma maneira cruel e silenciosa, faz de nós uma marionete, que junto com o tempo, brinca com a nossa existência, pois ambos sabem da nossa insignificância. E por isso não nos contam qual é a nossa verdadeira função aqui.

Enquanto a mim, que já quis ser igual e tento fazer uma inclusão diferente, vou continuar me superando, afinal tenho que acreditar no impossível, enquanto a realidade me consola.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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