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26/01/2024 às 08h00min - Atualizada em 26/01/2024 às 08h00min

Bicicleta

WILLIAM H STUTZ
A vila, já contei, tinha poucas almas. Era um lugar
tranquilo e bom de se morar. Longe de tudo é fato, sem
recurso. No aperto, tinha que andar muito, isso assustava
um pouco quem não era de lá. Acostumamo-nos rápido. O dia
da chegada está gravado em lembranças. O ônibus dirigido
pelo Seo Zé Toco corcoveou por mais de noventa
quilômetros em terra massapé, bem diferente do árido
chão de cá. Na seca, uma poeira só, nas águas, atoleiro
sem fim. Tinha asfalto não. Para ser franco, um pedacinho
à toa depois do Monte Alto, mas não ajudava muito, o
maior encravador ficava em subida bem antes do chão
preto, do betume que carrega o desenvolvimento regional.
Naquela época éramos esquecidos. Quantas vezes ficamos
ali esperando trator para arrastar o carro. Descíamos todos
até para atravessar pinguelas. O risco era grande, valente
motorista. A cidadezinha foi esvaziada com o fechamento
das olarias. Muita história contada, não estava lá ainda. O
segundo grande êxodo se deu rumo ao sonho Rondônia.
Diziam maravilhas de lá. Terras boas e baratas, quando
não dadas pelo governo. Muitos venderam tudo e para lá
partiram. Se deu certo? Sei não. Aventureiros
sobreviventes quase não davam mais notícias. Estranho.
O ônibus de Seo Zé Toco nos deixou em frente a nossa
primeira morada, a Pensão de Dona Mercides. Quando
arrancou levantou tamanha nuvem de poeira vermelha
que, no paradão de um meio-dia, desceu mansa só com o
próprio peso e a rua foi aos poucos aparecendo para nós.
Mesmo sem asfalto o chão brilhava em forno de carvoeira,
trêmulo, desfigurava adiante. Alguns preguiçosos cães se
encolhiam em sombra de marquise. Poucas árvores. Já
nasciam ideias, fresquinhas de plantio que não se realizou.
Depois conto motivos.
Assim a vida seguiu caminho. Logo boas amizades, povo
bom daquele tanto, difícil de encontrar. Fomos
acostumados, mas as ideias para a agora minha Macondo
eram inúmeras, curiosamente basicamente a
criançada encampavam tamanhos sonhos, e
posso te contar realizamos muitos deles.
Aos domingos a vila se transformava, era uma festa. Gente
chegava dos sítios para fazer compras nas vendas, ver
parentes e, claro, assistir um filme. Tinha sim uma sala de
cinema que funcionava nos fundos de um bar. Havia às
vezes um jogo de futebol no campinho de grama, com
torcida e movimento.
Um dos bares pertencia ao Jorginho japonês. Nipônico por
nome Jorginho era no mínimo diferente. Ali se bebia,
jogava conversa fora e dominó. Ficava apinhado naqueles
domingos. Aqui começa a história. Amanheceu segunda e
uma bicicleta ficou sozinha, abandonada como pedal
encostado no meio fio, bem em frente ao bar do Jorginho.
Bicicleta nova, bem enfeitada. Fitas coloridas saindo das
manoplas dançavam ao vento seco, farol alimentado a
dínamo, selim com capa onde se via um reluzente escudo
do Flamengo e no paralama dianteiro um imponente
emblema dourado da Raleigh, com suas asas em posição
de vento. Entre os raios, macarrões coloridos, última moda
por lá. Assim, como monumento, a bicicleta lá ficou a
segunda, amanheceu terça, quarta e quinta. Na sexta-feira
um pouco incomodada com a bela bicicleta na rua o
Jorginho me veio falar: — Professor, sabe aquela bicicleta
que está na porta do bar desde domingo passado?

Respondi com aceno, concentrado em abrir entrada em
coité para fazer ninho
— Pois é estou meio preocupado com ela.
Perguntei o motivo
— Uai professor, se alguém roubar a bichinha como que
vai ser?
Conhece lugar melhor de se morar?

Nota de rodapé: Hoje tem asfalto, Ponte estaiada. Me pergunto. Perdeu muito da magia, da poesia, da pureza, mas melhorou para as gentes de lá, será?



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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