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19/04/2024 às 08h00min - Atualizada em 19/04/2024 às 08h00min

Marmitas

WILLIAM H STUTZ
"A solidão é fera a solidão devora
É amiga das horas prima irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração"
Alceu Valença


Meus dias passam amargos. Não todos, mas muitos. Acordo com vontade de voltar a dormir. O sol por vezes não é bom companheiro.  A noite sim me abraça com o carinho que me falta. A rotina vazia me engole. Café da manhã tão torto. Nem de café gosto. Sigo. 

Plantas a cuidar, delas sou guardião responsável. Não sabem pedir socorro. Demonstram dor com seu murchar de folhas em sofrimento na terra seca do vaso. Converso em sussurros com cada uma. Peço desculpas por ausência prolongada. 

Minha gata Princesa. Por esta sinto especial carinho e me vejo recompensado pelo seu olhar, seu mudo ronronar, só sentido no tocar sua garganta, seu dormir ao meu lado na poltrona, em confiança absoluta, barriga para a mostra sem proteção. 

Tamanha timidez felina pouco vista. Ela, e só ela, percebe minhas tristezas e dores físicas ou da alma. A solidão cria seus fantasmas. Fazem-me companhia sombras e vultos. São bem-vindos. Sorrio. Para almoço busco marmitas. Cansei de cozinhar para um só. O tamanho das panelas não ajuda e, de maneira até criminosa em meu pensar, o desperdício. Não acredito em pecado, como nos foi ensinado nas escolas de outrora. A catequese do horror, do pecado das chamas do inferno. 

Acredito sim na miséria de tantos que nada têm. Não me dou o direito à soberba de atirar ao lixo sobras de tão precioso sustento. Adoeço. Marmitas, outra história. Não consigo ser fiel a um só lugar. O tempero, o cheiro, o gosto de Sazón, ou sei lá o quê, cansa, enjoa. Mudança de local se repete com frequência. Muda muito não. Padronizaram os gostos? McDonalds, KFCs da comida caseira? 

Uma carne ou duas? Logo de cara lhe perguntam. Um marmitex serve almoço e jantar em meu caso. A salada comprada, já higienizada, completa o cardápio. Não sinto o saborear das refeições. Cumpro um ritual de sobrevivência. Em silêncio sacro faço minhas refeições. Ouço meu mastigar lento e demoro sem saborear. Um dia ou outro resolvo fazer o meu comer. Sei que vai durar dois dias, mas faço com prazer. Lavo o arroz, tempero a meu gosto. O feijão pernoitou de molho, cozinha mais ligeiro.

A solidão continua parceira, mas não mais incomoda. Preparo uma salada imensa e colorida. Converso com a minha gata, que insiste em pedir algum petisco em seu vai-e-volta em minhas pernas. Suavemente digo não e acrescento...depois. A carne escolhida se deita temperada em prato fundo, preserva tenra.

Com paciência e calma acendo a churrasqueira. Pouco carvão basta. Observo sereno a brasa se formar em estalos. Bem vermelho vivo, está pronta. Deposito com cuidado o naco de carne do almoço. Sinto breve o cheiro de carne a suar sobre o braseiro.

Assim, pensando na vida, ouço os estalos do carvão e o pingar da carne. O cheiro vai longe. O dia da semana? Faz diferença? Pode ser uma segunda, uma quarta, sei lá! O arroz com jurubeba, o feijão rosetado, uma pimenta malagueta e uma carne assada ao ponto menos. Almoço pronto, me sirvo. À mesa, em silêncio costumeiro, mastigo lento. 

Mudou o tempero, tudo a meu gosto. Mas continuo só. Faço deste ritual um escape, pelo menos dos temperos dos comerciais, como alimento para muitos em panelas gigantes. 

Sento-me no lugar de sempre, olho a mesma porta, a mesma janela. O vento agita as mesmas plantas em ritmo idêntico. Os quadros nas paredes ao lado onde estou me mostram a mesma cena. 

Suspiro em tédio normal e me alimento. Sou um privilegiado. Não tenho a menor dúvida. Em um país, um planeta, onde milhões passam fome, me sinto um aforado, triste talvez. Só. Mas, sem dúvida, um privilegiado. Agradeço e sigo.

“A solidão dos astros
A solidão da Lua
A solidão da noite
A solidão da rua”



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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