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27/10/2023 às 08h00min - Atualizada em 27/10/2023 às 08h00min

Ritual doméstico

WILLIAM H STUTZ
Entra ano sai ano e lá estão elas. É só um trovejar mais forte, um merejar de chuva e lá estão elas, fiéis e solidárias.

Causam incômodo é claro, pois vira um corre/acode de arrastar os mesmos móveis, um colocar de panos no chão e um eterno esperar para ver se não deram crias, se não se multiplicaram como a nos foi determinado: não apenas crescei, mas multiplicai-vos. Até que essas estão batendo firme na lei divina. Não aumentam, não diminuem. Sentem-se eternas e, portanto, já perpetuadas. Assim perde-se qualquer sentido darwiniano de preservação. Não há necessidade de deixar descendentes.

O interessante é que, de certa forma, se torna fácil livrar-se delas. O problema, e que problema, é que elas dependem da chuva para existir. Quando está a chover, não se pode mais controlá-las, pois, aí sim, o simples pode tornar-se calamitoso, posto que só se pode realmente resolver definitivamente o destino delas durante a estiagem. Aí vem outro dilema. Como não as vemos ou sentimos nessa época, delas esquecemos completamente e a vida segue seu curso seco, indiferente.

Se esquecemos, não tomamos providências e, assim, usando desse tinhoso expediente elas vão marcando presença em nossas vidas. Transformando-se em marcadores ajustados do passar do tempo, mais pontuais do que qualquer relógio atômico.

Pausa no texto. Além de maquita abrindo o piso do meu quintal para plantio de árvores (me perdoem vizinhos sei do incômodo. Mas em compensação eu ouço Chico Buarque, Milton, Modern Jazz Quartet, Morricone e suas belas composições para o cinema e bons rocks nos finais de semana), sou brindado nesse exato momento por famigerado carro de som anunciando preço baixo de alguma coisa que, por hábito, faço questão de não ouvir. Mas espere, está dando volta no quarteirão, deixa ajustar os ouvidos para saber do que se trata. Caspita! Só porque resolvi lhe dar atenção mudou de rumo e desceu aos protegidos condomínios do bairro.

A maquita, frenética em seu falsete de dupla sertanejo universitário, continua em segunda voz. Já me acostumei e, como uma amiga resumiu: tudo passa e logo poderemos desfrutar da presença de lindas sombras e frutos. Aposto, também mais dia, menos dia, vou desfrutar de companhias parecidas como esta que em nome do verde, dos passarinhos estarei proporcionado. É inevitável, faz parte do curso da vida além do mais, segundo uma teoria que ando a compor, e aqui falo aos sussurros (shhh, é delas que voltei a falar) para que elas não me ouçam, além de vida própria temo que sejam contagiosas, passando de casa a casa.

Não defini ainda em minhas especulações os mecanismos de transmissão, mas o mais provável é algum mecanismo quântico ou metafísico dos quais não entendo patavina. Muito provavelmente receberei o prêmio Ignóbil se por acaso, porventura ou por Tutátis, minha tese seja publicada. Não deixa de ser reconhecimento. Até o genial Galileu Galilei teve que se retratar!

Aliás, muito apropriadamente lá nos idos de 1612 ele nos legou seu “Discurso sobre as coisas que estão sobre a água ou que nela se movem”. O que aqui vivemos nada mais é do que uma “pequena” variação dos escritos do mestre da ciência. Basta que mudemos no título o “sobre” por “sob”. Pronto “Donec Papa” no caso, título. Resta escrever.

O tempo é o senhor da razão.

Também não há necessidade de desespero, pois até poéticas companheiras se tornam. Assim, ano a ano, vamos convivendo harmoniosamente com elas até que, em uma ou outra temporada de seca, me lembre de, finalmente, consertar o telhado.

E que atire o primeiro balde aquele que em sua casa nunca teve uma goteira. Sobre o autor, ou seja, eu uai, William H Stutz: Escritor, veterinário, Leio mão, jogo búzios, trago o amor perdido (nesse item estou aprendendo ainda. Nem meu caso resolvi), ah e faço mapa astral nas horas vagas e cozinho muito bem também, faço uma moqueca dos deuses, Modéstia às favas, o amigo/irmão Vapa me trouxe várias panelas de barro do Espírito Santo,  das Paneleiras de Goiabeiras, logo ali beirando o mangue na Rua Leopoldo Gomes de Sales em Vitória. Mãos mágicas!



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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