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29/08/2023 às 08h00min - Atualizada em 29/08/2023 às 08h00min

Dissonâncias

ANTÔNIO PEREIRA
Logo depois da Abolição dos Escravos, que a memória oral do povo guarda que foi escondida dos negros aqui em Uberabinha, pelo menos uns dois anos, havendo forte indício de que seja verdade no registro de casamento feito pelo padre João da Cruz Dantas Barbosa, lá pelos fins de 1888, citando os nubentes como “escravos” de fulano de tal. Um dia falo disso.
 
Mas, depois da tal abolição, a cidade ficou meio ofendida de ter que repartir com os negros a liberdade das ruas e da escolha do trabalho. Volta e meia os jornais publicavam artigos espumantes de raiva, revoltados pelo simples uso do direito de conversar em público, fazer rodinhas na praça, dispensar trabalho, vestir-se com o apuro de suas posses, essas coisinhas que não ofendem ninguém, mas registram o uso da liberdade e a invasão de uma área até então restrita aos brancos.
 
Alguns articulistas chegaram ao cúmulo de afirmar que se devia fazer alguma restrição à liberdade dos negros. Tá certo, vocês estão livres, mas isso, isso e isso vocês não podem fazer. Por exemplo: dispensar ou não aceitar determinados trabalhos. Como isso irritava os antigos senhores!
 
Outro exemplo? Organizar um bloco carnavalesco e sair por aí, cantando e dançando, enquanto os brancos deixavam a festa de Momo esvair-se sem qualquer manifestação. Os jornais malharam a pobreza do bloco e o seu atrevimento. A rua era deles, dos brancos! Mais um? Era ofensivo a uma senhora branca ter que passar, no passeio, no meio de gente negra. Outro mais? Negrinha arrumadinha, balançando-se pelas ruas era caso de polícia. Era prostituição. Aliás, para todas as situações relacionadas há uma leve, ou direta, referência à necessidade da ação policial.
 
Para ser mais claro, vou transcrever o artigo do sr. “Dalton” (certamente um pseudônimo) publicado no jornal “A Tribuna”, segunda página, no dia 30 de novembro de 1919, sob o título “Dissonâncias” - é um arrolamento de preconceitos agressivos, injustos, gratuitos porque não se encontra no texto nenhuma razão, nenhum ato que justifique tanto fel: 
 
“A quem não tem o que fazer aconselho uma ótima distração. Andar pelas ruas a observar o movimento das crioulas. Isso deve ser de preferência aos domingos e dias de festas. Ah! é uma pândega. O pessoal chic sai a campo ostentando com todo o rigor toilletes, o dernier cri, fazendo footing, palestras animadas ou as moçoilas agarradas aos braços do namorado baboso. De manhã à noite, até dez horas, a crioulada vaga pelas ruas, algumas mais desembaraçadas pela roupa, conversa e modo requebrado de andar, embevecem papalvos e fazem comichão à polícia. É um gosto ver uma criada passar pelo patrão na rua aprumada, com pose e de focinho virado, ela passa sem ao menos perguntar se foi a própria patroa que fez o jantar e não se incomodam. Muitas, quando vão “cumbiná o ajuste” já destilam o rosário: “não durmo no alugué, dumingo num faço janta, num aguento impusição etc”. É bastante longo o rosário que às vezes só termina com a intervenção da outra parte contratante: “Bem, desinfeste. Você não quer trabalhar.” As crioulas daqui, se tivessem instrução seriam elemento perigoso à estabilidade sócio marital dos homens. Fariam deles um seu igual com quem por-se-iam no campo da concorrência. Se madame Pancoste pudesse contar com esse elemento a sua causa teria triunfado. (as) DALTON” 
                   
Fonte: jornais da época

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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