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26/05/2023 às 08h00min - Atualizada em 26/05/2023 às 08h00min

Prisão

WILLIAM H STUTZ
Não lembro se já contei sobre a morte de Beto, o peixe, e seu funeral nobre e ritualístico no vaso sanitário do banheiro. Se não, conto que para ocupar o vazio deixado pelo mal-humorado e brigão, era um Betta ou Peixe de Briga o doido. Bom, trouxe dias depois três Lebistes , Guppy ou Barrigudinho com alguns costumam. chamar um macho e duas fêmeas. Ali estão eles, levando sua vidinha submersa em vai para lá e vem para cá, sem fim.

O aquário fica em uma estante e, como boa estante, há de ter livros. Ontem ao buscar “Morte e Vida Severina”, o braço não chegou a cruzar o trecho que me separava das obras literárias. Os olhos, sem motivo aparente e nem por ordem minha, fitaram os peixes em sua clausura aquática. Fiquei preso ao chão a observá-los. As fêmeas de Lebiste são feinhas e sem graça, não possuem nenhum atrativo estético especial. Já o macho, esse parece um carro alegórico. Sua imensa e multicolorida cauda lembra os estandartes de legiões romanas em marcha ou bandeiras de embarcações de hordas vikings, a partir de seus portos nórdicos ao mar em busca de tesouros e de saborear, em homenagem a Odin, bom vinho servido em crânios de seus inimigos. 

A cauda de nosso Lebiste esvoaçava como se ao vento estivesse. E, é claro, o esnobe peixe bailava em galanteios às duas namoradas em majestosos movimentos coreografados. Muito brilho, um pequeno harém, liberdade nenhuma. Presos em ínfimo cubo de água.
Ainda parado, busquei cisma naquela cena. Os olhos não queriam desgrudar dos peixes, as pernas sem obediência, estáticas. 

Quantas gentes vivem clausura semelhante. Tem o mundo à sua porta, mas se satisfazem com o limitado espaço oferecido por uma cidade, um bairro ou mesmo alguns quarteirões. O ir e vir, direito pétreo de todo ser humano livre, é cerceado, não por ditaduras e suas leis marciais, mas por elas próprias. 
Alguns se limitam a suas casas, a seus quartos. Que corrente invisível é essa que, como grilhões de titânio imobilizam e tanta dor e sofrimento trazem àqueles prisioneiros de suas próprias almas. 

Uma das fêmeas do serralho do dono do pedaço dá um salto e quase cai fora do aquário. Tampa de vidro. O cubo se fecha sobre os seus ocupantes.

Outras pessoas se fecham em copas. Se prendem em si mesmas, seus limites passam a ser a própria pele. Tornam-se cativos e cativeiros. Se pudéssemos ver o que se passa em suas cabeças. O que deveria ser um universo infinito em luzes e iluminadas sinapses de ideias, sonhos, projetos e paixões, transformado em escuridão quase absoluta onde, ao acaso e sem ritmo, apagados quasares, um aqui, outro ali, longe, sem vigor, pulsariam desanimados.
Esta deve ser a pior das prisões. Alma na peia. Aos ditos loucos houve tempo de lobotomia frontal. Alguns escolhem o mesmo caminho sem trepanações, seguem para a escuridão é lá se encolhem em cativeiro.

Consegui sair daquele transe imposto pelos peixes, como se quisessem me culpar pelo seu destino. Deixei o quarto com os pés pesando toneladas, suando frio e sem olhar para trás. Sei lá se me pegam outra vez.

Respirando aliviado lembrei que não tinha pegado o livro. Quer saber, vou lá não, pelo menos por um tempo.
Fiquei a imaginar, se um pequeno cubo d'água daquele tamanho me levou em viagem tão longe, imagina se visito o gigantesco Aquário de São Paulo ou o Sea Aquarium de Miami? 
Entraria em catatonia eterna, prisão perpétua. Eu hein?  Tô fora. Amanhã solto os peixes no córrego. E viva a liberdade e seus prazeres e perigos.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.





 
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