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21/10/2022 às 08h00min - Atualizada em 21/10/2022 às 08h00min

Guarda-roupas

WILLIAM H STUTZ
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.
— Alberto Caeiro, "Poemas Inconjuntos". Athena n.º 5, fevereiro de 1925


Em meu guarda-roupas de tudo um pouco,
guarda lembranças, guarda cobranças
guarda exagerados segredos loucos.
Meu guarda-roupas, meu armário
tão confuso, organizada bagunça, retrato em carrara de minha alma, meus pensamentos, meus desejos.
um particular santuário.
Entre botinas e rimas, guarda prosa, guarda verso, esconde retalhos.
às vezes claros às vezes escuros
misturam-se em doce harmonia alhos e bugalhos
Meu armário, guarda sim meus mais loucos segredos,
mas bem lá no fundo entre livros, meias, cintos e canivetes,
guarda impregnados nas roupas porém escondidos alguns de meus maiores medos.

Aguardente 
Não há desencanto de amor, paixões bem resolvidas.
Amigos os tenho, poucos. Porém forjados em boa têmpera.
Inoxidáveis, eternos.
Com o Criador mantenho bom cortejo, sem intermediários.
Não confesso a homem que se diz, arrogantemente, santo.
Me deixo levar pela louca vida embriagado e em permanente torpor.
Fardo árduo. Empreita difícil.
Me embriago em busca de centelhas de êxtase, de verdadeira razão.
Me embriago, embriago, embriago.
Atormentado.
Padeço à mingua sim, de vida não correspondida.

Lições
A buscar distância do entojo
Na luta sempre pelo novo
Fugaz lição de vida.
Da palavra ao aceite o merecido deleite
De tempos a sorrir - prazer, frenesi.
A vida nos traz assombros; fugimos por certo de nossos internos escondidos escombros: sombrios, úmidos, mas nunca a dar nojo.
Pois frutos somos do que criamos, a riqueza bela e clara sempre presente.
Na experiência, vislumbre sempre a calma
sempre comum em seu bojo
A lavar com perfumada essência, a alma.
A menina vira e revirava seus mapas do livro de geografia.
Mineira que era nunca tinha visto o mar, e sonhava; 
não entendia por que suas Gerais não tinha nem um pedacinho de seu sonho.
Não é justo. 
Outros além do mar tinha muita água até em seus nomes:
Rio grande ( um no sul, outro no norte )
Alagoas ( puxa, pensava, além de mar tem um monte de lagos )
Rio de janeiro ( não lhe bastava o mês e o rio !?)
Não é justo.
Olhava o desenho de Minas Gerais.
Parecia uma bruxa de contos de fada.
Um narigão cheirando Mato Grosso,
No coco a Bahia.
Na nuca o Rio e o Espírito Santo.
Não é justo.
Decidiu
Seria rica, talvez política importante, compraria um pedaço de terra que ligaria,
enfim Minas Gerais ao Atlântico e ponto Pacífico.
E em seus sonhos justiça finalmente seria feita.

Cata-vento
Pode botar mais um prato à mesa, pode consertar aquele banquinho velho de madeira de lei que esta encostado no canto do paiol. Prenda os cães que não gostam de mim e me ameaçam na porteira, estou entrando. 

Recolha a roupa do varal que vem chuva.

Se Quero-quero gritar lá do pasto, não pegue a velha "flober" que calça bala 38; sou eu mesmo, meio trote em busca de luz, à cata de ventos melhores vindos do oriente onde o sol nasce quase sempre.

Caipira que sou sei bem sabido: 

"Se tiver poeira eu vou na frente,
se tiver porteira eu vou no meio,
se tiver atoleiro eu vou atrás".

Limpo os pés na enxada virada - fincada no chão, piso forte no alpendre de tábua gasta-corrida.

Sinto o café torrado vindo da cozinha.

Como é bom voltar.

Os retratos antigos de vós e vôs acabados à mão, bochechas rosadas em papel amarelado me olham, aparentemente felizes.

Passo pela imensa sala e só eu ouço seu cheiro doce.

Tropeço na canastra coberta de couro, aquela com as iniciais de Vô Altino escritas com tachinhas, as mantas de tear ainda estão guardadas lá.

Encosto no fogão quente com sua lenha-joia. Tem lingüiça defumando.

Saio para o quintal. Meus Deus, já é tempo jabuticaba.

Choro!


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 


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