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14/10/2022 às 07h56min - Atualizada em 14/10/2022 às 07h56min

Poetar de uma sexta

WILLIAM H STUTZ
Farrapo humano 
Discreto por necessidade, abandonado, sempre só
fez da vida tortuoso caminho, largou tudo e todos
das paixões ficou apenas miserável e fino pó.
Não adiantava, nem acurada perseverança
lutou com garras aduncas de pássaro de rapina
mas nada restava, nenhuma ligeira esperança.
Antiga pertinácia, substituída pelo mais puro e destruidor medo,
já não buscava refúgio seguro
a sorte a escorrer pelas mãos, não mais fazia da vida segredo.
Entregue a torpe destino a alma em chamas coração em frangalhos
resignado assistia o correr do tempo
na pele carcomida invisíveis mas doloridos bugalhos
Nada restava fazer senão mergulhar em sonhos
porém por mais que tentasse não conseguia os olhos fechar
quando assim o fazia apenas fantasmas medonhos
O sono era martírio pleno e cochilo tortura
entre trapos e tristes lembranças
Jogou-se em gran finale, no inexpugnável poço da loucura.

Animal
Ando meio esquisito, sem paciência.
Caso comprido conto mais não,
Perco o fôlego, suspiro sem tristeza.
Corto frase no meio, espero entendimento,
Quase nunca vem, sobra desacordo, desavenças.
Ando de prosa curta
Estou ficando monossilábico.
De tanta lidar passo a parecer com eles,
Meus bichos.
Todos silenciosamente barulhentos, noturnos.
Escorpiões e morcegos, minha vida, minha rotina.
Ando meio esquisito, monossilábico.
Paina ao vento; assim deveriam ser as prosas,
leves ligeiras, rumo? Incerto
Bicho fala pouco, observa
Ando de prosa curta.
Monossilábico.
Velhice?

Observâncias
Amiga um dia:
- Molhar plantas para segurar flor nessa seca que doi carece? vinga?
Num pensar e de espírito em paz caraminholei:
Água boa mesmo amiga, da de segurar flor é aquela que vem de cima, do céu. É aquela que conversou com os anjos e chegou mais perto das estrelas. Água resteira ajuda a manter viva as plantas; um viver-esperar-que-hora-chega, mas florada fica fraca, e o verde pálido/sofrido.
Penitência.

O retratista
- Junta as crianças, o retratista vem ai.
Calada a mulher arrumou as crianças. Uma a uma, da menorzinha de colo ao primogênito.
Penteou calmamente as madeixas da filha. Que mesmo diante do espelho de cristal reluzente parecia não se ver, olhar perdido em sonho adolescente.
Aos garotos os ternos engomados. Para elas os laços e cândidos vestidos de puro e alvo algodão com bordados, branco sobre branco.
Crianças prontas, pôs-se a arrumar. Soltou os longos cabelos e deixou-os escorrer por suas costas, nunca saia à rua ou à sala de casa com eles soltos. Em turbante os enrolou e em coque passou longo prendedor de marfim.
No jardim de inverno pose feita. Ele postado às costas da esposa, mão direita discretamente a repousar em seu ombro. A pequena no colo, o filho mais velho em pé ao lado do pai. A filha sentada no chão aos pés da mãe, em piso de tábuas corridas sobre tapete persa.
O retratista, experiente, já havia colocado a placa de filme em sua máquina, e num levantar de mãos que instintivamente roubou todos os olhares acionou o disparador congelando eternamente a família.
Nunca um sorriso, nunca nunca uma prosa. Assim foi em vida, longa vida, assim em redonda e lustrosa moldura ficariam para todo sempre em alguma parede descascada pelo tempo ou canastra empoeirada em algum canto de quarto.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 


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