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04/10/2022 às 08h00min - Atualizada em 04/10/2022 às 08h00min

Na Casa de Betesda

ANTÔNIO PEREIRA
Aconteceu há muito tempo.

Dona Dulcita (viúva do empresário Edson Garcia Nunes) ensinava bordado na Casa de Hospedagem Betesda. Betesda, em hebraico, quer dizer “lugar de misericórdia”. O “tanque de Betesda”, citado no Novo Testamento, era um reservatório de água onde as pessoas procuravam cura para seus males. Às suas margens, Cristo realizou um de seus mais importantes milagres.

Essa Casa hospeda crianças de até doze anos de idade e mulheres de fora da cidade que se submetem a tratamentos diversos no Hospital de Clínicas da UFU e não têm onde ficar. Foi fundada em 1995 pela Dra. Vânia Steffen e um grupo de presbiterianos e, além da hospedagem, oferece também assistência espiritual, psicológica e terapias ocupacionais que amenizam as esperas angustiantes.

Existe outra casa com o mesmo objetivo, a Casa de Hospedagem São Francisco de Assis, para casos específicos de oncologia. Esta, mantida por católicos.

Foi há uns dez anos.

Dona Dulcita ensinava as pacientes a bordar em panos de prato, colchas, toalhas e conversava muito construindo um vínculo amistoso que lhe permitia amenizar sofrimentos e ansiedades. O professor Rubens, seu filho, diz que “são muitos os paninhos que sobreviveram às suas artesãs e hoje servem como testemunhos silenciosos dos seus últimos momentos de dor, ou de alegria.”

Um dia, chegou à Casa uma linda menina de belos e longos cabelos cacheados, cor de mel claro, dos quais ela muito se orgulhava. Adorava ouvir histórias de fadas e estrelinhas. Inocente, de carinha alegre, pedia a todo mundo que lhe contasse dessas historinhas. Tinha leucemia. Logo a violência do tratamento começou a impor-lhe dolorosos sofrimentos. Era o desconforto do envenenamento químico, os distúrbios gástricos - que mesmo os adultos custam a suportar. Ainda nos momentos mais graves das crises causadas pelo tratamento, ela pedia, com uma carinha boa, que lhe contassem histórias de fadas e de mundos fantásticos, que a faziam superar a dor pelo encanto.

Mas o tempo passou, seu corpinho definhou, seus longos cabelos cacheados, cor de mel claro, começaram a cair e, de repente, os motivos de seu orgulho não existiam mais. De origem muito humilde, jamais tivera uma boneca, mas pediu na Casa que, no seu aniversário, lhe dessem uma de cabelos bonitos como os que tivera. Deram-lhe e armaram-lhe uma festinha da qual ela participou com os olhinhos brilhando de alegria, lá no fundo das olheiras.

Soprou as velinhas do bolo com o pálido rosto iluminado por uma alegria profunda de quem ama as pessoas e a vida sobre todas as dores e sofrimentos. Estava feliz.

Nada impediu que a doença recrudescesse. Nem as sessões de radioterapia, nem as infusões quimioterápicas. Os exames indicavam a inutilidade de tudo. A doença evoluía, as dores aumentavam, os desconfortos eram mais longos. Ainda assim, continuava pedindo que lhe contassem histórias e seus olhinhos, ao ouvi-las, brilhavam no fundo das covas negras gozando a maravilha das viagens a mundos fantásticos que sua imaginação construía e a embalavam nos encantos dos seus sonhos.

Dona Dulcita contava-lhes muitas histórias. Certa ocasião, pediu-lhe um vestidinho bonito para apresentar-se com ele diante de Jesus. Sabia que ia morrer. Um dia, foi para o hospital e não voltou mais. Passara muito mal e necessitava de cuidados urgentes. Na UTI ela insistia com a enfermeira para que lhe contasse histórias. Mas a enfermeira, assoberbada, pedia-lhe que esperasse um pouco, depois que terminasse suas tarefas, contaria muitas histórias. A menina esperou, esperou, esperou até que, num determinado momento, chamou a enfermeira: “Tia, não precisa mais contar a história. Eu estou vendo a fada e a estrelinha! ” – e faleceu.
 
Fontes: Rubens Garcia Nunes Sobrinho, Secretaria da Casa de Betesda.



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