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30/09/2022 às 08h00min - Atualizada em 30/09/2022 às 08h00min

Um ônibus chamado Brasil - parte 2

WILLIAM H STUTZ
No sobe e desce de passageiros, no abre e fecha de bagageiro, aos trancos e barrancos de uma estrada que parece que não via um trato há anos, no cheiro enjoativo de maçã e, quando tinha sinal de internet, o som de música(?) sertaneja universitária. Fora isso, a viagem seguiu em sua maior parte modorrenta. Esqueci de dizer que, a viagem se fez durante o dia, com saída de manhãzinha e a expectativa era chegar ao destino por volta das 20 horas.

Num dos sobe desce de gente, entra um senhor deficiente visual. Sem a ajuda dos motoristas, galga a escada e chega ao corredor. Com sua bengala a lhe guiar, pede em voz alta, mas em tom amigável: — Quem pode me emprestar seus olhos? Poltrona dez por favor. De pronto levantaram quase todos que estavam por perto para indicar o lugar. Meu cinto de segurança me agarrou com mais força ainda e em um tranco não me deixou levantar. Observar aquela cena rápida me deu certa alegria. Como nossa gente é cordial e atenciosa, como nosso povo é bom! Outro exemplo, em outra parada, confirmaria meu pensamento. Ao que este senhor se ajeitou, logo uma mão tocou seu ombro.

— Ó, qualquer coisa que o senhor precisar aqui ou nas paradas é só falar. Ele agradeceu com um sorriso e um aceno de cabeça. Mas não foi preciso. Nas paradas fazia da bengala seus olhos e, só em um momento, ao me perceber perto, me levou para a frente do ônibus e perguntou qual número estava ali escrito. Sábio, garantiu de não entrar em ônibus errado. Descrever os locais onde parávamos acho que é chover no molhado. Todos que já viajaram de ônibus convencional conhecem os banheiros ou, já que na primeira parte publicada sexta passada falamos da utilização de estrangeirismos no nosso dia a dia, todos conhecem a qualidade, com raríssimas exceções, dos toilettes ou toaletes destes lugares. A comida oferecida geralmente te leva a algo que vá ao fogo e um refrigerante no bico.

Quem consegue dormir em uma viagem durante o dia? Se você consegue mais que pequenos cochilos e assustados acordar, você é uma pessoa especial. Nas viagens noturnas o carro mal saiu da rodoviária e já estou no mundo dos sonhos. Geralmente só acordo no destino, com alguém a pedir licença para sair do meu lado.

Assim, seguimos a olhar paisagens tórridas, sem verde, rios em fios d’água quando ainda existem, nuvens e mais nuvens de poeira vermelha e muitas, mas muitas, queimadas e fumaça. Outra parada. Percebo uma movimentação diferente nos primeiros bancos do ônibus. Apuro e ouço o motorista a conversar com um passageiro. Já no caminho da saída para matar a sede com um refri percebo o teor do assunto. Um moço jovem, magro por demais, olhos de uma tristeza diferente. Sem expressão nenhuma, não apresentava raiva, irritação ou qualquer emoção. Não, ao tentar se levantar mostrou dor. Dor física. Não conseguiu se endireitar. A dor parecia tão forte que ele se arrastou de um banco para o outro na tentativa de segurar o descanso do braço para se apoiar e, tremendo, se pôs de pé. A coluna em curva quase não o permitia andar. A fraqueza, a fragilidade daquele homem eram comoventes. Desci e junto com outros dois ou três passageiros esperamos por ele. A história: tinha uma consulta marcada há seis meses que seria no dia seguinte de nossa chegada, porém, totalmente sem dinheiro a sua passagem só valia até aquele ponto. Estava sem dinheiro para seguir caminho e tinha fome, muita fome, estava sem colocar nada do estômago há dois dias. Um senhor negro alto, forte, com roupa de brigadista chegou perto e murmurou — Topa fazer uma vaquinha para comprar a passagem dele? A gente faz e o que faltar eu posso inteirar, disse ele.

Claro, respondi. E quanto ao que faltar nós dividimos. Combinado? Ele sorriu, mostrando um belo sorriso de cinema. — Valeu! Completou. E, já segurando o braço do moço, lhe convidou para comer um lanche no balcão. Repito, como nossa gente é boa e do coração gentil. Quanto mais simples mais disponível a ajudar, a ser solidário com o sofrimento alheio. Me deu um orgulho danado de ver que de nota em nota conseguimos comprar a passagem do moço doente e ainda sobrou para mais alguns lanches viagem afora. 

O espaço é pouco para continuar a falar sobre quanta coisa aconteceu nessa viagem. Teve a moça que trabalha em uma boate, a menina egoísta que se recusou a sentar perto do moço das passagens e trocou de lugar com cara ruim “... é só no filé” ... 

Uma viagem principalmente como esta é um retrato, uma amostragem de quem somos, como somos. Assim, o trecho que deveria ser feito em dez hora conseguiu heroicamente ser completado em treze. Sobrevivemos todos  Resta saber para onde vamos, para qual porto, aeroporto ou rodoviária vai nos levar esse ônibus chamado Brasil.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



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