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06/09/2022 às 08h00min - Atualizada em 06/09/2022 às 08h00min

Brasil, mundo da canção

ENZO BANZO
Aqui no Brasil, somos formados não só lendo, mas ouvindo. Muitas vezes, mais ouvindo do que lendo. Desde que o rádio e o disco se firmaram na vida nacional, nas primeiras décadas do século XX, essa escuta passou a incorporar ao universo sonoro cotidiano os sons das mídias, que vinham de longe. Foi na década de 1930 que o rádio se consolidou, em sua era de ouro. Quem nasceu a partir da lá cresceu ouvindo música no rádio. As gerações nascidas no início dos anos 1940 estão entre as primeiras a encontrar esse universo, povoado pelo rádio. Cresciam em um mundo de canções, e daí surgia o ímpeto para desdobrar esse mundo.

Em lugares diferentes do país, dialogando com distintas culturas locais, para quem nascesse, por exemplo, há 80 anos, em 1942, esse era um ponto em comum, de formação convergente: a língua cantada no Brasil, disseminada nas vozes dos intérpretes do rádio. Nesse nosso presente 2022, ao comemorar os 80 anos de gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Paulinho da Viola, estamos celebrando, com eles, esse mundo auditivo que compartilhamos nos diferentes cantos. Esses quatro, assim como sua geração, cresceram ouvindo canções de Noel Rosa, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, em vozes de Carmen Miranda, Francisco Alves, Aracy de Almeida, Orlando Silva, dentre tantos. Compuseram, nesse universo, uma educação sentimental em comum, e a partir dela criaram suas próprias linguagens. E a gente cresceu os ouvindo, formando-nos com seus cantos, sons e imagens, entre lirismo e provocação, amor e humor, reverência e transgressão.

Cada um de nós tem, com esses e outros artistas, sua história particular. A minha por exemplo: criança lá em Ibiá nos anos 1980, lembro-me de Caetano nos discos de casa e na tela da TV, ao lado de Chico Buarque; de Gil com uma estrela no cabelo, cantando Punk da periferia e Andar com fé; de Paulinho da Viola não tenho uma lembrança precisa, mas parece que sempre conheci sua música; e de Milton Nascimento, com sua boina característica: o Coração de estudante era o meu próprio coração querendo descobrir o mundo. Eram meus amigos. Amigo é coisa pra se guardar.

Depois que a gente cresce nesse mundo cancional, ele não nos abandona, pois nos constitui. Não é diferente com esses quatro oitentões, em cujas obras e atuações deslumbra-nos a vitalidade. Caetano taí, lançando disco novo, pensando o Brasil e a canção, a arte e a política, como sempre fez, como sempre de outro jeito: o pulsar de seu coco e coração nos instiga e nos balança. Chorei de pouco em pouco, cena a cena, vendo o documentário da família Gil girando em torno da obra e do pensamento de seu grande e vivo ancestral, tataravô, bisavô, avô, Pai Xangô, Gilberto. Tive a alegria de ver Paulinho da Viola de pertinho, cantando com os filhos e com sua elegância aqui no Teatro Municipal, tudo fundido no presente e na sua presença, quando eu penso no futuro não esqueço meu passado. E o Milton: decidiu encerrar a carreira de shows com a turnê “A última sessão de música”; pra todo lado, ingressos esgotadas poucas horas após a abertura das vendas; fiquei de fora; mas o canto de Milton Nascimento é aquilo que há de mais presente e infinito, é uma voz que sempre esteve aqui e sempre estará; e a cada vez que soar, nada será como antes.

É sorte nossa crescer nesse mundo de som e sonho. Um Brasil que se louva e se critica, que revira tudo na gira do ritmo, na matéria sensível da voz. Nessa semana de 7 de setembro de 22, é bom que a gente deixe o coração bater com os tambores e cantos da canção, um coração vivo, ritmado, lírico e desenquadrado, muito diferente desse frio e mórbido órgão do imperador, sem graça e sem bossa. Lembremo-nos do que Arnaldo Antunes cantou para João Gilberto, que vale para esses quatro oitentões e para todos nós que moramos nesse país musical: “São tantos e tão poucos tem noção/ de como se inaugura uma nação/ não é bem com monumentos/ ou com balas de canhão/ é quando uma brisa bate na respiração/ e entra no juízo de um João/ que dedica todo empenho/ e amor ao seu engenho/ para arejar os cantos da canção/ e dar sentido a nossa sensação”.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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