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25/08/2022 às 08h00min - Atualizada em 25/08/2022 às 08h00min

Viver em paz

IVONE ASSIS
Como escreveu Fernando Pessoa, na persona de Álvaro de Campos: “A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos...”. Na semana passada, ao passar na porta de uma instituição, havia uma caixa vazia, porém etiquetada, da Assis Editora, na pilha de caixas para o catador. Brincamos: – Vejamos quem está aqui, aguardando o resgate. Na etiqueta estava “PPP: Participação, gestão e qualidade da educação”. Rimos, e eu disse: – É o Bosquinho. Sinal que fez um ótimo trabalho e os livros já estão nas mãos do leitor. Continuamos por aquela avenida, caminhando e comentando sobre a competência daquele escritor fantástico, que tanto nos encanta com sua literatura, seja na ciência, seja nos contos, seja na poesia...

Tão logo chegamos, meu celular, que havia ficado, estava a chamar. Retornei. A amiga do outro lado chorava, copiosamente, contando: “O Bosco morreu, amiga. O Bosco se foi. Eu não posso acreditar. Foi agora, há poucos minutos. Um acidente de trânsito bebeu sua vida, próximo a...” o choro foi abafando a conversa. O susto. A etiqueta. O aviso. Aprendi com meu avô, quando alguém estiver desesperado, por mais difícil que seja, mantenha a calma, do contrário só piorará a situação. Que golpe duro era aquele! O poeta trocou de versos; deixou de ser prosa, para virar poesia.

E como o próprio poeta escreveu no poema 65, de “Memórias da casa velha” (2015, p. 85): “ – O que se aprende/ com nossos mortos:/ um choro vivido,/ a (falta de) sorte,/ uma cadeira vazia,/ o leito sem corpo,/ um pouco de consolo./ Depois são as flores,/ as dívidas e as dúvidas,/ o (p)reparo da vida,/ o insumo pra morte.”.

Esse poema é profundo demais, para caber em alguns versos, apenas. Esse poema enche o Universo. Com ele, na noite de ontem, fui vendo o pranto dos ucranianos recolhendo os destroços de corpos de seus compatriotas e/ou familiares, que iam sendo encontrados, pedaços aqui, pedaços ali, sob os escombros de uma cidade destruída pela ganância humana. 

O cachorro amedrontado vai se aninhando entre as pernas de um soldado que acabara de chegar. A velha senhora pousa o olhar enevoado de lágrimas sobre os destroços de sua casa no campo, que queima ardentemente o mobiliário, o telhado, as plantas, as mudas que nem tiveram a oportunidade de florescer, para experimentar a vida. A cratera, à entrada da casa velha, mostra à velha, que a velha vida já não existe mais. É preciso se agarrar a alguma esperança.

No amargor daquela cena, lembrei-me da poesia primeira de Bosco de Lima, em “Memórias da casa velha” (2015, p. 21), que diz: “A velha casa de meus pais guarda cheiros seculares. Num canto, um balde de saudades, um guarda-roupas com os netos, um cesto com lágrimas. Noutro canto, um baú de risadas, dores antigas, beijos secos, carinho mofado”. Mas, nem isso sobrou para aquela senhora, cujas paredes da casa não tiveram tempo para mofar, porque o fogo consumiu tudo. Foram-se os retratos amarelados. Foram-se os risos. Foram-se os rostos... 

O beijo de boas-vindas nunca mais existirá para aquela família, porque a família se foi; e não mais existirá também para o poeta, porque ele também se foi. Quem sabe possam se encontrar do outro lado, então, como celebração da amizade, o poeta recite o poema 73, da obra citada, àqueles que foram arrancados de seus lares. Diz o poema: “As cores/ da infância/ eram muito indecentes.../ Colorindo também os sonhos,/ imaginem um morcego cor-de-rosa,/ em uma árvore marrom-vermelha.../ A casa velha da memória,/ que se finda, era verde, azul, rosa,/ agora, cinza”. (p. 93).

De volta ao livro PPP, aquele citado na etiqueta da caixa vazia, à introdução lemos (2015, p. 9): “O livro que ora apresento está alicerçado em três bases conceituais/práticas que são objeto de disputa nos campos da esquerda e da direita, do público e do privado, do transformador e do conservador. Trata-se de democratização, participação e autonomia”. Mas, nesta guerra do vale-tudo, em que vale está a autonomia de se viver em paz?


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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