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05/08/2022 às 08h00min - Atualizada em 05/08/2022 às 08h00min

Máquina também é gente

WILLIAM H STUTZ
Revirando papéis em dia de bota-fora de muitas lembranças boas e ruins, contas pagas, recibos amarelados. Um passeio ao passado, um relembrar. Morar sozinho dá nisso. Mas nessa empreitada de espantar fantasmas encontro esta crônica. Achei legal compartilhar. Depois me contem. 

Anos atrás, quando nosso segundo filho nasceu, já cansados dos atropelos do velho "tanquinho", resolvemos depois de muitas contas e cálculos, que chegara a hora de comprar uma máquina de lavar de verdade. O salário de dois servidores públicos, se espichado e regrado, com base em planilha doméstica de gastos, cortando-se aqui e ali, daria conta da aquisição.

A ida à loja foi ritualística, parecia que estávamos a comprar uma obra de arte inacessível até então, em sofisticado leilão da filial parisiense da Christie's ou na sóbria, cinzenta, mas nem por isso menos chic, Sotheby's.

Lances e negociações feitas, lá se foi para nossa casa a ser paga em centenas de suaves prestações nossa primeira máquina de lavar roupas de verdade.

Não era uma qualquer. Ah, não senhor! Era uma que, apesar do codinome Baby, com seu estômago com capacidade para quatro quilos de roupas de uma só vez, olha que sucesso, que avanço, era de uma marca que hoje virou sinônimo de coisa boa. O bom senso me impede, ao contrário das novelas de televisão, de fazer Merchandising explícito.

Estávamos nos céus. Fraldas, roupas de cama, toalhas, tudo era lavado, enxaguado, torcido (centrifugado), sem interferência nossa. Os panos saíam quase secos, e em pouco tempo malas e malas de roupas estavam prontas para serem passadas. Um encanto. Estávamos enamorados com a tecnologia.
O tempo foi passando e assim como as máquinas humanas, as mecânicas também têm lá seus problemas. Nada que um competente técnico de oficina autorizada não resolvesse.

Peçinha aqui, ajuste acolá e nossa agora companheira de tarefas domésticas estava outra vez pronta para o batente.
Como ficava em uma varanda grande no quintal, onde também temos uma cozinha caipira na qual passamos longos períodos, fazemos almoços de fim de semana, a máquina já era quase da família, íntima. Participou de muitas festas de aniversários e encontros importantes com amigos e familiares. Sempre recatada e discreta compartilhou de muitas confidências e segredos. Não temos notícias que nada dela tenha vazado, além de água e um óleozinho em algumas raras ocasiões.

Certa feita foi submetida a um transplante de motor. Voltou novinha em folha e com mais um atestado longo de garantia. Felizmente para nós foi só um susto.
E assim a vida ia tocando seu curso, sem maiores surpresas ou aflições. Roupas e roupas rotineiramente sendo lavadas, tudo seguia como d'antes no quartel de Abrantes.

Um belo dia, nossa lavadora começou a ensaiar seus primeiros passos. Já na primeira centrifugada surgiam alguns tremores tímidos e pulinhos imperceptíveis. Nada preocupante ou que um pequeno toque, um pequeno empurrãozinho não resolvesse.

Com o passar dos meses a máquina parecia querer ganhar vida própria. Passou a pular cada vez mais longe e mais alto, abria e fechava ritmicamente a tampa e, não raro o fio da tomada era arrancado assim como a mangueira que a abastecia de água. Certa tarde tanto pulou que quando dei por mim estava abraçado a ela como a um touro mecânico ou um cavalo de rodeio, só faltava correr a espora, soltar um dos braços balançando o chapéu e gesticular freneticamente: wohooooooo! Não posso deixar de mencionar que "outra pessoa" lá em casa também passou pela mesma constrangedora situação.

Socorro técnico. Será que o convênio, digo, a garantia cobria?
Testes e mais testes feitos, aparentemente nada ficou constatado, e ainda, juro, notei uma pontinha de riso no rosto do moço, assim como vi uma tremida suave e um bater de tampa baixinho assim que o técnico virou as costas, e olha que ela estava desligada. Falsa...

Os pulos e performance de nossa lavadora foram se aperfeiçoando. Dedicação e treinos intensivos. Sem contar o apoio familiar, pois a cada ruidoso balançar, todos, onde estivessem na casa, gritavam em uníssono: Dá-lhe Daiane! Pois foi com este carinhoso apelido que ela passou a ser por nós chamada. Daiane, em homenagem à famosa e maravilhosa ginasta gaúcha. Tão importante que tem até máquina querendo imitar.

Se algum dia não der mais conserto a família vai sentir muita falta e saudades de nossa única Daiane, modelo duplo twist carpado, ou simplesmente "Dos Santos", a insubstituível.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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