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08/07/2022 às 08h00min - Atualizada em 08/07/2022 às 08h00min

Pássaros

WILLIAM H STUTZ
Pior cego é aquele que se recusa a ver. Começo com esse clichê para tentar entender o comportamento humano frente a fatos, às vezes, tão óbvios, tão claros. Alguns teimam em olhar apenas para o próprio umbigo. Sentem-se tão Cuzco (umbigo do mundo) que chegam a enfeitar esta pequena cicatriz que, dizem, Adão e Eva e a moça da propaganda de sandália não tinham, com piercings e joias para se sentirem sempre com brilho e maiores do que o restante da humanidade.

Gente assim costuma não dar atenção aos pequenos e importantes fatos ao redor. Não dão a mínima.

Perdem oportunidades únicas de registrar beleza e perigo. Sobre perigo quero contar.

De alguns dias para cá ando a observar fato no mínimo intrigante. Encontro pelo bairro a fora passarinhos de várias espécies, cores, tamanhos e idades, mortos sem motivo aparente. Não se observa sinais de pedradas, nenhuma lesão externa, o que torna o fato ainda mais misterioso. Semana passada, um bem-te-vi desmanchou-se em penas bem no meu quintal. Seu amarelo-ouro vivo não combinava com a morte. Segurei-o na palma das mãos e sua cabeça inerte pendeu no vazio. O rigor mortis já havia passado e, assim, pelo tempo, não haveria possibilidade de necropsia, sílaba tônica na segunda vogal, e não na terceira, como insistem alguns pouco chegados a leituras e dicionários.

Para por fim à pendenga, um alento: segundo o professor Sérgio Nogueira, “a última edição do Vocabulário Ortográfico, publicada pela Academia Brasileira de Letras, registra duas formas: necropsia e necrópsia”.

Ao observar o belo pássaro morto, fui tomado por profunda angústia só de imaginar que alguém no bairro estaria usando veneno tipo “chumbinho” – cujo uso é restrito e de venda proibida ao público – por algum injustificável motivo e as aves, acidentalmente, ingerindo. E, mais, matar passarinho? Quem seria a besta absoluta a cometer tamanha barbaridade?

O belo Bem-te-vi foi apenas um dos muitos que encontrei pelo bairro. Rolinhas, pombas-do-bando, garrinchinhas e até sanhaços. Sabemos pela prática de trabalho que estamos em plena temporada de nascer de morcegos, muitos dos quais ou caem acidentalmente das costas da mãe ou despencam em queda livre ao tentarem seu primeiro voo. Recolhemos dezenas deles por mês em situações assim. Quando não nos acionam, os pequenos morrem abandonados. Aí não existe intervenção humana, é a seleção natural atuando em sua plenitude. Mas passarinhos caindo do céu e agonizando?

É claro, os pássaros também morrem, assim como as baleias e os elefantes. Morrem de susto, doenças e velhice. Alguns, como as araras e papagaios cativos, em sua maioria têm morte trágica. Quando criança, em pleno bairro Funcionários, vi uma arara vermelha em ataque de desespero, talvez por não poder mais tocar o céu, se atirar em voo suicida à frente do ônibus Serra Capivari 44. Asas atrofiadas pela prisão, não suportou mais a solidão. Vi também um papagaio morto pelo cão da casa. Anos de espreita até conseguir a façanha e calar aquele assobio imitando o dono que o enganava. Vingança canina? Não acredito. Vingança é coisa de gente (des)humana.

Torço para que estas mortes sejam obras do acaso, da natureza em curso. Caso contrário, o pouco que me resta de credibilidade nas gentes chegará a nível crítico. Uma Chernobyl interna prestes a desastre anunciado.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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