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27/05/2022 às 08h00min - Atualizada em 27/05/2022 às 08h00min

Recontros

WILLIAM H STUTZ
Criança
"Bola de meia, bola de gude/ O solidário não quer solidão/ Toda vez que a tristeza me alcança/ O menino me dá a mão/ Há um menino, há um moleque/ Morando sempre no meu coração/ Toda vez que o adulto fraqueja/ Ele vem pra me dar a mão."
(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Mato todo dia um pouco da criança que existe dentro de mim.
Mato esta criança toda vez que leio um jornal, que vejo
televisão ou que leio um livro ruim, toda vez que praguejo;
mato esta criança sempre que vejo alguém maltratar um
velho, um bicho, uma planta, um a criança...
Mato esta criança sempre que ouço/recebo/devolvo ofensas,
rancores, maus humores, maus amores.
Mato esta criança toda vez que penso em pessoas tristes,
sozinhas, amargas, egoístas, gratuitamente agressivas. Mato
esta criança quando na rua vejo a miséria de nosso povo, a
violência espontânea, a fome, a doença e falta de
esperança.
Mato esta criança quando tenho que escrever sobre guerras,
doenças, morte, catástrofes, traições, subornos.
Mas sei que, se mato esta criança todo dia, a cada destes
mesmos dias esta mesma criança renasce dentro mim
sorridente, iluminada, suja de terra, pés descalços –
soltando papagaio, face rosada, cheiro de jabuticaba e
manga furtada
me dizendo que devo acreditar na vida e eu encantado com
sua ternura me rendo, reconsidero e esperançoso sigo
adiante.
A criança que trago aqui dentro é uma lagarta peluda e
venenosa, mas que todo dia se transforma na mais linda
borboleta do universo e me acalenta.

Resposta a Augusto  (O morcego – Poema de Augusto dos Anjos em 'Eu e Outras Poesias' – 1912)
Não Augusto,
Dormiste cedo.
À meia-noite não estaríamos em teu quarto,
Recolhemo-nos bem mais tarde,
à caça estamos para proteger-te de nocivos insetos que
serão nosso repasto.
Não Augusto,
Não queremos tua goela,
É repugnante para a maioria de nós este teu escaldante
molho;
Não Augusto,
Não levante outra parede nem passe o ferrolho,
nossos caminhos são outros,
não somos sombras nem quiméricas visões, mas estes
artifícios não impedirão nossa entrada.
Sim Augusto,
Às vezes poderás nos ver em teu quarto, não como um olho,
mas se pensares bem
como um noturno anjo a velar teu mais profundo sono.
Se, eventualmente,
circundamos tua rede é apenas, novamente, para defender-te
do ataques de pequenos e mordazes seres, estes sim, ávidos
por tua seiva.
Não Augusto,
Não nos ataque em histéricos movimentos de teu gládio,
contenha teu ânimo belicoso guerreiro em pânico, jamais nos
acertarás,
ágeis somos, o tempo nos ensinou a escapar destes rompantes
humanos.
Augusto,
Terno ventre nos gerou,
quente protetor de mãe zelosa, que ensina e educa.
Somos feios?
Tu ao nascer pois também não o foste?
Mãe carinhosa a nos alimentar com mesmo leite que te fez
grande poeta.
Não Augusto,
não foi um feio parto, mas pura gênesi,
expressão maior da natureza
cósmica, indecifrável.
Não Augusto,
Não somos a consciência-alma humana,
os rios o são como canta Rosa:
"Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas
profundezas são tranqüilos
e escuros como o sofrimento dos homens."
Entendemos teu medo,
pois se aves de belas plumas fôssemos, por certo cantados
em versos e paixão seríamos.
Nossa presença talvez evoque teus mais profundos medos,
tuas mais escondidas frustrações, teus amores impossíveis,
a vida, Augusto, a vida.
Mas lembra-te Augusto,
a mais pura e alva pomba, se em teu quarto estivesse
(esta sim à meia-noite), não tardaria a despejar sobre ti
descargas
titânicas de excrementos-penas-pragas, e mesmo assim tu a
perdoarias.
Leprince de Baumont vos ensinou humanos,
a serem tolerantes com o diferente
e nele buscar sempre o Belo e nunca a Fera.
Não derrubamos torres nem governos, Augusto.
Vivemos harmoniosamente todos os setembros da eternidade
Veja-nos com outros olhos augusto poeta, com outros olhos.

Minas
(para Milton Nascimento)
Um pouco das Minas, das esquinas,
dos clubes dos bares,
das montanhas sem mares;
dos horizontes, das fontes, cachoeiras imensas, geladas;
das águas paradas de lagos piscosos,
dos rios murmurantes serpenteantes,
das Gerais, das terras altas, das veredas estreitas,
tortuosas
das gentes alegres, às vezes um tanto belicosas,
das broas de fubá, da cozinha no quintal, do fogão de lenha
da comida deliciosa
Dos sons imaginários
De novas estrelas,
De cenouras em feiras modernas,
Dos mil tons tão lindamente festejados,
dos anjos, a voz


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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