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29/04/2022 às 08h00min - Atualizada em 29/04/2022 às 08h00min

Quintais

WILLIAM H STUTZ
Tenho mania de lua, sempre tive, desde pequeno. Cresci em quintal grande, cresci em vários quintais. Conto. Apesar dos muros que separavam as casas, eles, os muros, não delimitavam espaço para nós. Sempre havia árvore a ser escalada e buracos nos tijolos que nos serviam de apoio. Era pulo só e já estávamos na continuação de nossos quintais. Alguns eram hostis. Contei do galo que dava carreira em quem se aventurasse por seu terreiro. Outros, donos, ruins em tristeza e péssimo humor, nos rogavam pragas e atiravam caquis maduros quando, como bando de micos, cruzávamos “seu território”.

Nem podiam imaginar que suas moitas de bananeiras, há muito, se tornaram nossos banheiros. Para que correr apertado para casa se ali em “nosso” pedaço existiam tantos banheiros desocupados? É fato que, de quando em vez, um de nós saía correndo com as calças arriadas escorraçado por alguma galinha no choco. Ninhos espalhados pelas moitas eram mais temidas armadilhas do que os cães bravos.

Aliás dos cães. Alguns infelizes que detestavam crianças, bem dizer, não éramos exatamente santos, pelo contrário, nos faziam miúdos de verdade, com toda coragem e molecagem que nossas pernas e imaginação permitissem.

Logo que corria notícias de cachorro novo em nossos quintais começava estratégia de conquista.

Deitado sobre o muro deixava o bicho latir grosso sem parar. O dono chegava na varanda, via cena e sorria satisfeito a pensar: um menino que aqui não entra mais, frutas e galinhas seguras. Qual!

O bicho latia até ficar rouco e, cansado de ficar em pé, soltava o quarto traseiro, sentava. Bom sinal. O latido ia ficando fraquinho, murmúrio, até se transformar em bocejo canino. Largava o corpo com as patas da frente esticadas, parecendo a desnarigada esfinge egípcia e deitava em leve rosnar. Era o sinal para o segundo estágio da conquista.

Todos nós carregávamos bolinhas miúdas de carne, do tamanho de bolinhas de gude, surrupiadas de geladeiras de casa. Hora em vez rendia coça, pois um tinha levado a mistura do almoço. Chinelo cantava. Sinal respeitado por todos. Aquela marca vermelha de sandália havaiana pregada nas costas era um troféu, cicatriz de uma guerra de paz. E, acredite, ninguém virou bandido por conta disso.

As bolinhas de carne iam sendo atiradas junto ao cachorro que, depois de bom cheirar, catava uma a uma com o canto da boca, comia ainda deitado, focinho rente ao chão. Umas jogadas mais um pouquinho em nossa direção. Com preguiça, levantava. Uma espreguiçadeira de dobrar lombo para frente, outro bocejo e lá vinha o bicho. Assim acontecia durante alguns dias. Logo já fazia parte da turma, acompanhava pulando e aí não tinha jabuticaba que chegasse. O dono do bicho em feliz maldade, achando agora que era maritaca, preparava espingarda de sal.

Tenho mania de lua. Sei suas fases, acompanho seu brilho, seu silêncio. Os bichos me ajudam a lembrar. Morcegos em particular. Se é lua cheia, o movimento é menor, começa tarde. Na nova é aquele fantástico aranzé.

Um piseiro no céu. Triste aquele que não olha o céu com paixão verdadeira. O resto é falsa poesia.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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