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29/03/2022 às 08h00min - Atualizada em 29/03/2022 às 08h00min

O quebra-quebra (parte 1)

ANTÔNIO PEREIRA
Cine Uberlândia - o pivô da tragédia
Começava 1959.
 
O governo JK abria as portas do mercado brasileiro para as indústrias automobilísticas alemã e americana. Construía, a toque de caixa, uma das mais belas cidades do mundo, Brasília. Planejava a construção de extensa rede rodoviária e deixava instalar-se, a contragosto, é claro, uma galopante inflação que nos atormentou por muito tempo.
 
O país se enrolava numa onda de aumentos de preços incontroláveis. As mercadorias fundamentais já tinham sido remarcadas acima da normalidade. Já vinha do governo anterior uma estrutura reguladora de preços: a COFAP com ramificações estaduais chamadas COAPs. Suas determinações ou geravam complicações ou não eram cumpridas.
 
Os chamados “quebra-quebra” se alastravam pelo país como forma de reação popular ao descontrole. São Paulo, Santa Catarina, Ceará, Minas Gerais já tinham experimentado a rebeldia do povo.
 
Aqui, os aumentos desproporcionais já tinham chegado, mas, até então, ninguém reagira.
 
Uberlândia era uma pequena e pacata cidadezinha que ainda sonhava superar Uberaba. Tinha em torno de setenta mil habitantes na zona urbana. Um telefonema interurbano para São Paulo demorava, no mínimo, 24 horas para sair e uma viagem até Uberaba se esticava por horas e horas.
            
Era época de estudantes politizados que, na mesa do bar ou do baile, conversavam política e tomavam a defesa do povo. A União dos Estudantes Secundários de Uberlândia (UESU) estava contra os abusos. Fazia comícios, escrevia para os jornais, entrevistava vereadores, reunia-se com líderes políticos, sindicais e intelectuais.
               
Por essa época, uma portaria da COFAP autorizou aumento para os cinemas de todas as categorias. Os de primeira poderiam cobrar até 24 cruzeiros.
               
Possuíamos quatro cinemas: Uberlândia, Regente, Éden e Paratodos, de duas empresas. Esses estabelecimentos refletiam o comportamento preconceituoso da cidade. Uberlândia e Regente eram da elite. Só se permitiam frequentadores enternados. Eles possuíam uma espécie de mezzanino onde podiam entrar os negros e os sem paletó-e-gravata. O Éden e o Paratodos eram do povão. Chamados, por isso, de “poeira”. O cinema era um dos principais meios de lazer da época.
               
Os jornais de sábado, dia 17 de janeiro, ao lado da propaganda do filme que o Cine Uberlândia passaria no domingo, “O Meninão”, com Jerry Lewis, anunciavam que o preço dos ingressos subiria para trinta cruzeiros. Naquele dia, na rua, as pessoas comentavam o incrível aumento de 70% quando a COFAP tinha permitido “até” 33% para os cinemas de primeira categoria”.
               
A diretoria da UESU reuniu-se extraordinariamente para definir uma reação contra o abuso. Depois de muitas discussões e muitas propostas, resolveu-se fazer uma “fila boba” diante da bilheteria do cinema Uberlândia demonstrando o seu descontentamento e impedindo a entrada de espectadores sem forçá-los. Os estudantes se encontrariam na porta do cinema às 18 horas. A sessão começaria às 19:30 horas. O Cine Uberlândia ficava na avenida Afonso Pena.
               
O domingo amanheceu triste. Chuvoso e um pouco frio. O ar embruscado. À tarde, os estudantes passearam pelas ruas portando cartazes contra o aumento.
               
Às 18 horas, já havia quarenta deles à porta do cinema. A bilheteria abriria às 19 horas. Quando ela se abriu, formou-se imediatamente uma longa fila. O primeiro perguntou à mocinha bilheteira:
                - Quanto é?
                - Trinta.
                - É muito caro. Não vou nessa m..
               
E foi-se lá para o fim da fila. E veio outro e outro e outro, com o mesmo papo e iam para o fim da fila. O tempo passava e ninguém conseguia comprar ingresso. Aquela coisa inusitada começou a chamar a atenção dos transeuntes. Ali era o centro da cidade e por ali passava gente de todas as classes, de todas as cores, de todos os pontos. E foi parando gente, parando gente, parando gente pra ver. Alguns já riam e faziam comentários. Mas, apesar de ser uma ação pacífica, nem por isso deixava de espicaçar os nervos da rapaziada, preocupada com alguma reação, principalmente dos empregados do cinema, aborrecidos com aquele deboche. 
 
*Continua nas próximas semanas

Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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