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11/02/2022 às 08h00min - Atualizada em 11/02/2022 às 08h00min

Lad um Louva-a-deus

WILLIAM H STUTZ
Era uma vez um louva-a-deus ardiloso no capturar suas presas. Com frequência pequenos grilos, moscas, mariposas, borboletas e uma infinidade de outros bichos caíam em sua lábia. Geralmente final de tarde o louva-a-deus ou simplesmente Lad, se posicionava sobre uma pequena pedra coberta de musgo em um cercadinho de tiririca, para melhor disfarçar e se proteger de outros predadores. Ali ficava, como santo do pau oco, a fingir reza devota.  Os moradores da mata iam chegando encantados com tamanha fé e ali se postavam como a acompanhar a muda oração. Lad era paciente e lentamente movia sua cabeça e seus grandes olhos para lá e para cá, observando seus fiéis.

Mito! Gritou um mais emocionado. Lad acima de tudo! Vozeou algum, quase em prantos.  E assim iam se deixando ficar. Quando um mais afoito se aproximava em demasia, com bote ligeiro e veloz, que nem o outro percebia, garantia sua janta, mais um cérebro no papo. O mastigar lento da presa levava a plateia à loucura, pois parecia que Lad estava a murmurar mais uma oração ao criador de todos os bichos. 

Acabara de cair uma chuva brava. Chuva daquelas de 100 anos, como dizem os meteorologistas. Qual nada! Em 1988 havia caído uma desse jeito. Ainda havia barracos no final da avenida Rondon, às margens do Uberabinha. Foi uma tragédia. Vidas se perderam em água e lama, placas de asfalto desciam avenida abaixo como negras ilhas, cortando carros e gentes. Trabalhamos a noite toda. Naquele tempo servidor público era verdadeiramente SERVIDOR PÚBLICO. Os cabides de emprego, os tais comissionados que crescem mais do que formiga e puxa-sacos eram poucos. Ano que marcou época, 1983 estávamos criando uma verdadeira prefeitura, com carência de pessoas qualificadas. Muitos especialistas em paletó na cadeira e poucos servidores de fato à época existiam. Os poucos  verdadeiramente compromissados eram malvistos, pois contaminavam a maioria. Em raro momento de lucidez se davam conta de que tinham que trabalhar para a população, mas a vontade passava rapidamente em um grande bocejar e os olhos sonolentos voltados para o relógio de ponto, quando havia. Muitos nem possuíam local de trabalho, mesa ou uma função clara. Com o passar dos anos os cargos de confiança, comissionados, viraram meio de vida. Às vezes uma mesma pessoa possuía dois ou três cargos.  Muitos daqueles que acreditavam no fazer ficaram velhos e, para alegria dos administradores, foram se aposentando, morrendo, entrando em extinção. Naquela noite de 1988, independente de secretário ou ofício, vários funcionários se apresentaram espontaneamente como voluntários para ajudar no que fosse necessário.

O tempo, em seu galope sereno, foi correndo por janelas e portas, camas e túmulos e a Rondon, como uma senhora vaidosa, foi se deixando carregar em maquiagens e mais adereços iluminados a luzes de led e pinturas. Por baixo a fúria contida de um monstro, sabendo breve um novo despertar.  A fúria voltou como anunciado e, os estragos, os mesmos de sempre. Até quando? Repito, até quando? Que eu saiba, nenhum “comissionado” de secretarias não diretamente envolvidas na tragédia, se é que existe alguma que não estivesse, sujou camisa bem passadinha, nem sapato na lama da tristeza. 

Naquela tarde, pouco antes do mundo desabar em água, estava a caminhar com os olhos grudados nas nuvens que se faziam negras, pesadas e baixas. Meu coração foi longe naquele fatídico 88. Do nada um pássaro-preto em voar apressado deixou cair aos meus pés ninguém menos que o louva-a-deus, Lad. Olhei de canto de olho mas, quase que imediatamente, outra graúna em voo de caça tentou apanhá-lo ainda tonto. Talvez minha presença tenha perturbado sua pontaria e uma bicada seca bateu no cimento do piso sem machucar o pequeno Lad. Em impulso o peguei ligeiro para ver se estava ferido. Não, só desorientado. Coloquei-o na palma da mão e cheguei bem perto o rosto para vê-lo. Achei o foco com o mover de meus óculos e observei que ele também me mirava virando a cabeça pra lá e pra cá. Não tentou fugir, apenas se deixou. Segurança? Talvez. Sem fechar a mão o levei para meu jardim e, com cuidado, o deixei ficar entre folhas largas por conta da chuva que se avizinhava feroz. Não, não existe maldade nestas pequenas criaturas, como também não está presente em rios enjaulados em galerias cobertas. Piche e terebintina a cobrir os caminhos de todos, menos das águas. Ou será alcatrão?

Fiquei com dó do pobre inseto tão falso devoto, assim como com dó fiquei dos filhotinhos da graúna, que naquela noite de tempestade dormiriam com fome.

Ah! Quanto ao caricato louva-a-deus Lad, este não representa os bichos. Humanizou-se demais. Ficou muito parecido com gente do mal. Esse deveria virar comida de passarinho ligeiro.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 
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