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01/02/2022 às 08h00min - Atualizada em 01/02/2022 às 08h00min

Mexendo o doce, com açúcar, com afeto

ENZO BANZO
Vi a série documental "O canto livre de Nara Leão" (direção de Renato Terra, lançamento Globoplay, 2022) logo que entrou no ar. Nara, fascinante, na vanguarda da vanguarda, trafegando entre diferentes barcos. Impactou-me o papel central da cantora em momentos cruciais da nossa canção (Bossa Nova, canção de protesto, Tropicália); a firme delicadeza de quem se impôs sendo mulher e jovem; a negação da fama; a misteriosa imagem final, quando sua filha e neto são surpreendidos pela entrada em cena de um pássaro, após a evocação do nome da artista.
 
Se exerceu papel tão inovador na história da nossa canção, Nara Leão o fez porque tinha profundo conhecimento da tradição sobre a qual pisava. É possível inovar sem conhecer a matéria sobre a qual se inova? Pois a dita "musa da Bossa Nova" (alcunha por ela negada) dizia adorar as antigas canções de fossa cantadas por mulheres, com sujeito lírico feminino, as quais, muitas vezes com ironia, representam uma mulher sofredora. É o caso, por exemplo, de "Camisa amarela", de Ary Barroso, lançada em 1939 na voz de Aracy de Almeida, e depois regravada por intérpretes como Gal Costa e a própria Nara.
 
Foi inspirada nesse universo que a cantora encomendou a Chico Buarque uma canção nessa linhagem. E Chico, como sabemos, é um grande compositor de obras por encomenda, e de versos com sujeito lírico feminino (essa foi a primeira de uma longa safra). Daí surgiu "Com açúcar, com afeto" (1967), baseada na relação e na renovação de uma tradição que se edificava desde a década de 1930 no rádio e nos discos.
 
Talvez tenha sido "Camisa amarela" o principal modelo para Chico moldar a nova obra. Mesmo que não, a audição comparada das duas canções é bastante reveladora. Se musicalmente não são parecidas, a estrutura poética em que se forja a narrativa é bastante similar. Em ambas, a voz feminina descreve as desventuras do amado que a troca pela vida desregrada das ruas, mas que volta para casa no final, recebendo a acolhida da mulher. 
 
Em "Camisa amarela" temos os versos de abertura: "encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela / cantando a Florisbela / convidei-o a voltar pra casa  em minha companhia / exibiu-me um sorriso de ironia / desapareceu no turbilhão da galeria". Já em "Com açúcar, com afeto", ouvimos: "com açúcar, com afeto / fiz seu doce predileto / pra você parar em casa / qual o quê / com seu terno mais bonito / você sai, não acredito / quando diz que não se atrasa". A partir dessas introduções, o sujeito cancional feminino irá detalhar a consciência que possui de ser trocada pela vida boêmia do homem. 
 
Na canção de Ary Barroso, o retrato da personagem masculina é mais caricato; aparecem termos como "mamado", "chumbado", "cambaleando", "zonzo"; quando volta para casa, até a ameaça da violência é sinalizada: "quis brigar comigo / que perigo, mas não ligo". Já na de Chico, que troca o humor pela melancolia, as imagens são mais sutis: "no caminho da oficina / há um bar em cada esquina / pra você comemorar". Na volta, ao invés da iminente agressão, o choro um tanto quanto sem vergonha: "quando a noite enfim lhe cansa / você vem feito criança / pra chorar o meu perdão". 
 
Nas duas faixas, o efeito poético da surpresa é gerado pelo desfecho contraditório: a mulher, que expõe a queixa do abandono pelo parceiro, o acolhe quando retorna: "ele é para mim meu sinhô do bonfim", em "Camisa amarela"; "abro meus braços pra você", em "Com açúcar, com afeto". A narrativa em versos é a verbalização consciente de uma situação que tensiona uma reação de repúdio; mas, fundada em um certo mito do amor romântico, e cerceada por uma cultura em que a mulher jamais deve opor-se ao homem, o brado desdobra-se em reconciliação. 
 
Muitas canções do tempo de "Camisa amarela" dão a ver, se espelhadas na realidade, o machismo que estrutura a sociedade patriarcal, da qual ainda não saímos. Ao retomar tal linhagem do cancioneiro, Chico Buarque está puxando esse fio, ao seu modo de cronista lírico, capaz de incorporar a uma letra de canção as contradições cotidianas, criando personagens, enredos, tensões, conflitos explícitos ou velados. Esse tipo de representação ficcional, seja em narrativa, dramaturgia, cinema, poema ou letra de canção, não implica em defesa do retratado. Pelo contrário, é um convite à leitura crítica.
 
Se nas duas canções o final surpreende, é justamente porque a deslealdade, o abandono e o machismo foram expostos ao ouvinte, que os reconhece. Os versos, que sugerem um desfecho e culminam em outro, são pistas abertas à construção de leituras por quem ouve, suscitando modos de sentir e de pensar para além do que projetou o compositor, ganhando novas faces com o passar do tempo. A leitura crítica das canções funciona, assim, como abertura de possibilidades, jamais como assunto encerrado. Nessa contradança, o ouvinte é quem mexe o doce.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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