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17/07/2021 às 09h00min - Atualizada em 17/07/2021 às 09h00min

​A isonomia inexistente

ALEXANDRE HENRY
Um acontecimento há poucos dias mostrou bem o que é a sociedade brasileira ou, pelo menos, parte dela. Foi promovida uma festa na região dos Jardins, em São Paulo, conhecida por ser uma área nobre. Evidentemente, a festa não poderia ter ocorrido em plena pandemia. A polícia chegou e encerrou o evento, mas não sem ser agredida. Uma modelo saiu do local xingando os policiais e mandando que eles fossem para a favela.
 
Semanas antes, parte considerável dos brasileiros aplaudiu a ação da polícia fluminense em uma favela, a qual resultou na morte de quase trinta pessoas, incluindo um policial. Entre a turma dos mais abastados, os comentários foram quase uniformes no sentido de que bandido bom é bandido morto, que tinha que ser daquele jeito mesmo, que tinha que chegar arrebentando e por aí vai.
 
Basicamente, é isso o que temos. A polícia matar cidadãos na favela pode, mas parar uma festa clandestina de ricos não pode. É um pensamento que vem desde a chegada dos portugueses ao país, desenvolvida no sistema de capitanias hereditárias, no privilégio aos amigos do rei, na separação entre casa grande e senzala. Há uma ideia clara de que, perante a lei, alguns são mais iguais do que os outros. Evidentemente, esse pensamento não me desce, pois acredito no velho ditado segundo o qual “pau que bate em Xico bate em Francisco.
 
Acho impressionante como muita gente é explicitamente contraditória sem qualquer constrangimento. Na minha profissão, isso salta aos olhos. Quantas vezes não vi a pessoa defendendo matar preto e pobre sumariamente, pela própria polícia, sem direito a qualquer julgamento, apenas com base no “só pode ser bandido mesmo”. Depois, a mesma pessoa acaba sendo acusada de uma ilegalidade qualquer e grita a plenos pulmões que tem direito à mais ampla defesa do mundo, que pode recorrer zilhões de vezes até o Papa, se for preciso. Para os outros, execução sumária. Para ele, ampla defesa sem fim.
 
A questão é que, se realmente queremos um país desenvolvido, esse pensamento deve mudar. Ou a lei vale para todos, de forma igualitária, ou continuaremos sendo uma república de bananas. Sim, o dinheiro acaba contratando bons advogados e não há como negar que, mesmo na mais desenvolvida das nações, o rico terá à sua disposição uma defesa muito mais completa se for acusado de alguma coisa. Não é disso que eu falo, não é isso o que eu critico.
 
A minha fala se dirige ao pensamento expressado pela tal modelo na saída da festa. Ela não estava questionando o direito de ter acesso a um bom advogado e a uma justa defesa. Ela defendia simplesmente não ser nem importunada pela polícia, polícia essa que deveria tocar o terror lá na favela, não nos Jardins. Esse é o pensamento problemático. Ele não parte do pressuposto de que todos devem ser julgados de forma justa. Ele simplesmente defende que a polícia serve para arrebentar pobre e proteger rico, nunca o contrário.
 
Quando aconteceu aquela questão na Favela do Jacarezinho, eu recebi muitas mensagens elogiando a “limpeza" feita pela polícia. Na época, eu afirmei que, tendo havido morte de bandidos durante efetiva troca de tiros com a polícia, tudo estaria dentro da lei. Defendi, também, o direito a uma ampla investigação sobre o ocorrido, pois assim como a modelo saindo da festa não está imune à ação da polícia, a própria polícia não está imune à investigação de suas ações.
 
Mas, defender que se apurassem as condições em que as quase trinta pessoas morreram na favela foi encarado, por muita gente, como um absurdo, como se a pessoa estivesse compactuando com aquela "vagabundagem que merecia morrer sumariamente”. Mais acintoso ainda para essas pessoas foi pedir que imaginassem a mesma situação, só que em condomínios de luxo: o que achariam da polícia trocar centenas de tiros dentro das ilhas de luxo que se espalham pelo país? Evidentemente, esse simples pensamento já é uma ofensa para muita gente, como foi ofensa para a modelo a polícia ter cumprido o dever dela lá na festa. Ofensa? Sim, porque se parte do pressuposto de que quem tem dinheiro não é bandido e que polícia serve para pegar pobre, ignorando-se que os maiores crimes, ao menos em termos de valores, são cometidos por engravatados.
 
Enfim, volto a dizer que está tudo errado. Ou começamos a pensar que a lei vale para todos, que a polícia e a justiça devem agir da mesma forma na favela ou no condomínio de luxo, ou nunca chegaremos aos pés das nações mais desenvolvidas.


Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
 
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