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10/07/2021 às 08h00min - Atualizada em 10/07/2021 às 08h00min

A liturgia do cargo

ALEXANDRE HENRY
A palavra “liturgia” é associada àquele conjunto de práticas de cultos religiosos, mas também é utilizada para as profissões em geral. São formas, palavras, gestos e outras questões comportamentais geralmente adotadas por quem exerce um ofício específico. Evidentemente, a liturgia de cada profissão ou cargo vai mudando ao longo do tempo, mas nunca deixa de existir.

Por conta disso, todo mundo espera ver em cada profissão algumas características comuns. Você vai ao médico e espera vê-lo vestido de branco. A razão? Médico trabalha com questões delicadas de saúde e a assepsia é fundamental nessa área. O branco da roupa permite identificar mais facilmente se realmente as vestes daquele profissional estão limpas ou não. Se você vai a uma academia, não espera que o educador físico esteja vestido de terno e gravata, ou que a educadora física esteja em um tailleur acompanhado de salto alto. Tais profissionais estão ali para exercitar o corpo e as roupas devem ser adequadas para isso.

Falando em academia, você verá ali som alto, gente conversando e dando gargalhada, muita descontração e, claro, piadas e até palavrões. O ambiente é para descarregar as energias, é para liberar endorfina, adrenalina e por aí vai. Mas, quando você vai lá no fórum participar de uma audiência, você espera outro ambiente. Academia e fórum são locais importantes para a sociedade, cada um com sua missão. Mas, evidentemente, possuem características próprias. Se você chegar a uma academia e estiver aquele silêncio quase sepulcral, cheio de pessoas sérias e comedidas, você certamente vai estranhar. O inverso vale para o fórum. As pessoas estão ali para resolver problemas, alguns deles capazes de impactar diversas vidas. A atenção aos detalhes, às palavras, aos textos, tudo isso é importante, não havendo muito espaço para descontração.

Acho que você já entendeu o ponto aonde quero chegar. Nenhum profissional precisa ficar preso às amarras da liturgia de seu ofício, mas também não pode ignorá-las e, certamente, deve ficar atento para certas linhas vermelhas em relação às quais ainda não se pode cruzar. Voltando à academia, você aceita seu treinador todo brincalhão, aceita a camiseta meio diferentona dele, mas vai estranhar muito se ele chegar com hálito de bebedeira. Por mais que o ambiente seja descontraído, ali não é um boteco. As pessoas estão lá para praticar exercícios, para melhorar a saúde, não para se embriagar.

Eu penso muito nisso em relação ao meu cargo. Se há um ofício com a tal da “liturgia” é na magistratura, no cargo de juiz. Não como antes, claro. Antigamente, por exemplo, candidato a juiz que era solteiro, de cabelo longo ou com tatuagem tinha problemas na hora do concurso. Isso não existe mais ou, se existe em algum lugar, é um comportamento anacrônico. Porém, ainda há certas linhas que não devem ser cruzadas. Eu não me lembro de ir ao fórum de bermuda e chinelo, mesmo durante o plantão noturno. Aliás, como juiz, a própria lei manda que eu tenha uma conduta ilibada (ou seja, “certinha”) tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Se você encontra o engenheiro que projetou a sua casa saindo de um boteco bêbado, isso não te chamará tanto a atenção.

Mas, se você encontra o juiz, aquele que decidiu a guarda do seu filho na semana passada, vomitando em uma sarjeta depois de uma bebedeira, talvez você não veja com os mesmos olhos. Não que o juiz seja melhor do que o engenheiro ou que uma bebedeira esporádica denigra a imagem de alguém. É que, simplesmente, há uma liturgia do cargo que não contempla, no caso dos juízes, situação dessa natureza.

Hoje, há uma discussão sobre essa questão no tocante aos nossos governantes. As pessoas que exercem cargos políticos não precisam ser sisudas, não precisam ter aquela cara de juiz quando vai proclamar uma sentença no tribunal do júri, em um caso de homicídio. A espontaneidade, o sorriso e até uma boa dose de descontração e leveza são atributos que podem ser muito bem vistos em um político. Lembro-me do Obama, presidente americano, que várias vezes quebrava o gelo de alguma situação com uma tirada mais leve, mais engraçada, com um gesto mais, digamos assim, igual ao resto dos mortais.

A questão é que, como eu disse, há certas linhas vermelhas que ainda não podem ser cruzadas. Isso vale para cada profissão e cargo, do juiz ao preparador físico, do médico ao presidente da república. Quando se cruza tais linhas, a sensação que fica é que a pessoa não é a mais adequada para aquela posição.


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