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16/03/2021 às 08h00min - Atualizada em 16/03/2021 às 08h00min

A venda da fazenda (parte 1): o aprendizado

ANA MARIA COELHO CARVALHO
Com o falecimento do Zé, meu marido, resolvi vender a fazenda Olhos D'Água, no município de Buritizeiro e nas margens do rio São Francisco. A venda não daria apenas uma crônica, mas um livro inteiro, e grosso.
 
Tudo começou no ano passado, quando, com o Zé doente, tive que assumir e aprender muita coisa. Algumas espantosas. Por exemplo, na hora de telefonar para os frigoríficos para vender os bois magníficos, que não sabiam o destino que os esperava, o Zé me orientava para perguntar se eles contavam os dentes.  Porque se o boi tivesse mais de quatro dentes, pagavam menos!  Daí eu argumentava que era lógico que todo boi tem mais de quatro dentes.
 
Ele ficava indignado com minha ignorância, eu perguntava ao frigorífico, vendia para aquele que não contava e até hoje não entendi. Na hora de conferir o tal romaneio de abate, aprendi que uma arroba equivale a 15 quilos e que pagam só a metade do peso do boi, a outra metade é carcaça: chifre, rabo, couro, pés. Não valem nada (mas para o boi são essenciais). Também aprendi, na labuta diária, que existe boi gabiru e vaca boiadeira. Eu ficava no curral de 7h da manhã às 18h, anotando o peso das várias categorias, enquanto a boiada passava pelo brete e pela balança, para fazer a apartação do rebanho ou para vacinar.
 
Havia a turma dos bois acima de 500 kg prontos para o abate; bois entre 350 e 500 kg para engordar mais um pouco; machos entre um e dois anos; bezerros de apartação; vacas de leite e vacas boiadeiras com seus bezerros; vacas solteiras; novilhas e novilhotas. Passavam muitos bois bonitos, de carcaça comprida, brancos, com orelhas curtas. Eram os nelorados, os mais nobres. Entre eles, os gabirús, de carcaça menor, de testa, orelhas e chifres grandes, pêlo mais arrepiado e geralmente de cor. Engordam pouco e são vendidos a preço de vaca. Ou seja, são a ralé do gado e desprezados pelos criadores.
 
Mas, são bons de pular a cerca e cruzar com as vacas. Daí vão nascendo bezerros gabirús e isso atrapalha o rebanho todo. Assim, na hora da pesagem e apartação, eles já eram separados para serem castrados, coitados. Entre os bois nelorados, fiquei fã de um. Gordo, com 600 kg, bonitão, de couro lisinho e esperto. Os empregados da fazenda contaram que ele, por duas vezes, estava na turma dos bois a serem levados pro frigorífico. Mas não havia santo que fizesse o boi subir no caminhão. Empurravam, puxavam com cordas, espetavam com varas e nada. Ele não ia. Claro, sabia que ia morrer. Aí, tinham que colocar outro boi no lugar e ele continuava por ali, pastando e engordando.
 
Quanto às vacas boiadeiras, são as ruins de leite, mas isso passa a ser uma vantagem para elas. São usadas apenas pra ter bezerro e vivem livres, leves e soltas no pasto, com o bezerro mamando todo o leite. Já as vacas leiteiras, embora tenham que dividir o seu leite entre o homem e o bezerro, são mais personalizadas, todas têm nome: conheci a Neguinha, a Esperança, a Seda Branca, a Caretinha, a Fantasia, a Cocada e muitas outras. A Chumbada, por exemplo, tinha 15 anos e já tinha dado à luz (ou parido?) oito bezerros. Era boa de cria.      
 
Outra coisa que aprendi, quando eu e meu filho tivemos que andar pela fazenda, com o encarregado, para fazer o planejamento para revitalizar a pastagem: tem muito tipo de capim, uma loucura. Andropogon, braquiária, massai, mombaça, colonião, grama tipi, capim umidícola. Cada qual com suas características e suas necessidades. O pasto necessita ser dividido em piquetes, não pode ter dois tipos de capim juntos porque o gado come o que gosta e pisoteia o outro. Tem muitas pragas também, como a tiririca, que o gado come quando falta capim. E existe capim pra época de sêca e capim pra época das águas. É preciso sempre jogar defensivo agrícola para matar as pragas e há específico para folhas largas. Todo ano é preciso adubar o pasto: jogar calcário, depois gesso agrícola, depois gradear, semear, passar a niveladora e rezar pra chover! Depois que nasce o capim, joga-se outros nutrientes, como fosfato, KCL, nitrogênio, ureia.
 
Também não pode rezar muito para chover, porque pode dar enchente no São Francisco, a água invade o pasto e compromete todo o banco de sementes, como já aconteceu antes. Cruzes, difícil demais alimentar bois e vacas! Sem falar no tanto de sal e milho que é preciso comprar. Na verdade, eu nem precisaria aprender tudo isso, mas como eu é que teria que comprar as sementes e pagar todo e qualquer gasto, não poderia ir tocando a fazenda assim às cegas. Sempre ouvi o Zé dizer que "o olho do dono é que engorda o boi".
 
O problema maior é que eu não queria engordar boi algum. Se fosse para criar bezerrinhos, e vender bezerros, até que tudo bem. Mas mandar caminhões cheios de bois nobres para o matadouro era de cortar o coração. Pior, tenho uma filha zen que é vegetariana, faz meditação e yoga. Quando o caminhão ia sair com os bois, ela conversava com eles, rezava e pedia perdão.  Ainda me falava que o sangue dos bois sacrificados voltaria para mim, ou seja, algum dia eu seria culpada por tanto sangue derramado.
 
Com tantas coisas complexas, junto com o sentimento de culpa, resolvi seguir o conselho do filho e pedi a orientação de uma equipe de especialistas em manejo de fazendas. Vieram de Belo Horizonte e falaram o dia todo. Olharam a fazenda, viram o gado, os maquinários, conversaram com os funcionários, analisaram todos os dados que eu tinha anotado, sobre a contabilidade da fazenda e sobre o rebanho. Ficaram impressionados com a organização e fiquei orgulhosa. Concluíram que havia muitas categorias de gado e que seria preciso definir um modelo, pois, como estava, o manejo era complicado (ah, isso eu já sabia!).
 
Talvez o melhor fosse comprar bezerros de 6 arrobas e vender com 13 arrobas para confinamento. Ou seja, os garrotes ficariam presos, engordando, até serem encaminhados para a morte. Nunca que eu faria isso. Outra solução seria criar vacas e vender bezerros. Gostei. Mas quando soube das dificuldades com estação de monta, vacas que nunca dão cria, toque para saber se a vaca está grávida, parto, desmame com bezerros berrando, etc e tal, desisti. Sobrou vender o gado todo e arrendar a fazenda.
 
Mas o Zé sempre dizia que arrendar acabaria com a fazenda. Para agricultura, até que seria possível, mas as terras não eram apropriadas para colocar pivô. Sendo assim, conversamos em família e optamos pela venda. Só que eu não sabia que vender era mais difícil que tocar a fazenda. Continuarei a epopeia nos próximos capítulos.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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