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22/12/2020 às 08h00min - Atualizada em 22/12/2020 às 08h00min

Emcantar, Caetano, Emicida, tempo das voltas

ENZO BANZO
Na noite do último sábado fiquei quatro horas em frente à TV, assistindo duas lives em sequência. Dois shows diferentes, em lugares e contextos distintos: do lado de cá da tela, pode-se viajar de um canto a outro, não só no espaço, como no tempo. Mesmo se o rio não está pra pesca, e se o mar não está pra peixe, a roda ainda gira, e vai e volta, sem linha reta. Nada melhor que a costura das canções.
 
Primeiro foi o Grupo Emcantar, com seus convidados que escancaram a potência artística do que está aqui ao nosso redor. Faço parte dessa história que celebrou seu aniversário de 24 anos; adentrá-la é visitar sensibilidades vividas e por viver. Kayami Satomi, líder do UdiCello, abriu o palco encantado. Começou a tocar e falei para a Mariana, ao meu lado do lado de cá: uai, essa música fui eu que fiz. Era um tema de violão despretensioso, que eu improvisei num fim de tarde no distrito de Martinésia, quando, pré-cabeludos, partíamos os amigos para lá. Deve ter uns 24 anos... Por muito tempo eu repeti esse tema nos ócios dos ensaios. Depois esqueci. Carlim Ribeiro não, e incluiu essa música, com o título "Cabeça de vento", no disco instrumental "Dum Dum", que o Emcantar lançou em 2017. No arco lírico e exato de Kayami, foi sua luxuosa estreia no palco. Voltei e vi o pôr do sol do coreto da vila-distrito. Choramos, daqui, choramos. E assim seguimos no rio do Luiz Salgado com seus casos de pescador (o tempo não está pra pescaria?); e na ternura do faz de conta de André Salomão, como calar? O Trem das Gerais emociona só de subir ao palco, uma família que é uma banda, vozes que cantam porque têm muito a dizer. Eu fui voltando, eu fui ficando, eu voltei e dei um abraço de longe no tempo e no espaço, sob o encantamento do canto.
 
E ainda tinha o Caetano. Taí um artista que cultiva e cultua a canção, em seu potencial de nos conduzir no além-tempo. O Natal dos presépios de Santo Amaro, areia da praia e cheiro de pitanga. "Boas festas", de Assis Valente, é a mais brasileira e comovente canção natalina, misto de fé e lamento, marcha-celebração da tristeza dos excluídos: "já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem". Caetano volta a Santo Amaro dos anos 1940 com essa canção dos anos 1930. Cada um que o assiste é transportado a diferentes tempos da própria vida, reencontra pessoas, lugares, épocas. Das próprias casas, os diferentes espaços passeiam por tempos infinitos. Daqui, quando canta "a seda azul do papel que envolve a maçã", sou conduzido a algum espectro da minha infância que não sei onde está. Aquele cheiro era da seda ou da maçã? Quando lembra da cara do próprio filho Moreno ao cantar sua "Oração ao tempo", os milhares que o assistem enxergam outros rostos, das próprias vidas. As canções fazem a gente brilhar, idas e vindas, e gente é pra brilhar, não pra morrer de fome. Com tantas voltas, não me espanta o lapso de Caetano ao desejar um feliz 2001 no final do show. Algum lugar do tempo onde parou e já vai partir. O 2001 imaginado e apocalíptico de Kubrick e Tom Zé, astronauta libertado, minha vida me ultrapassa em qualquer rota que eu faça. Temíamos o fim do mundo. Torres explodidas. Ainda não era. E agora?
 
Pra completar o final de semana em frente à tela de transporte, no domingo vi "AmarElo – É tudo pra ontem", o impactante documentário de Emicida, a quem chamar de rapper, ele próprio já admite, é uma limitação. Eu que pensava em um tempo não linear, deparo-me logo na abertura com a frase iorubá anunciada como epígrafe pelo artista: "Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje". Há depois vazio de antes? O samba já era rap, ouve aí, samba de breque. O documentário oferece uma revisão histórica que revela a negritude apagada, mas em uma atitude que é crítica e conciliadora; visita os antigos com olhos de agora; ocupa o nobre Teatro Municipal de São Paulo sem deixar Oswald, Mário, Anitta e Tarsila – a vanguarda modernista de 1922 – do lado de fora. É esse gesto conciliador que possibilita que a catarse maior venha na canção do nordestino Belchior. É o tempo das voltas que permite que uma música dos anos 1970 seja um hino dos 2010, e que siga. Uma canção que, imagino, será entoada por um coro de vozes distintas e distantes quando badalar a meia-noite do próximo dia 31 de dezembro: ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.




 
 
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