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24/11/2020 às 08h00min - Atualizada em 24/11/2020 às 08h00min

Encontro das paralelas: vida vira arte vira vida

ENZO BANZO
Qual foi a obra de arte que fez seu mundo girar? Qual foi o movimento que te fez sonhar? Qual foi a obra de arte que te fez transbordar? A mostra Paralela 2020 aconteceu nesse final de semana, na vida da tela. É de lá que emanam essas perguntas, vocalizadas pelas personagens-testemunhas da obra audiovisual "Deixa eu te contar", série de três vídeos em que os artistas Alexandre Roiz, Jeremias Brasileiro e Fernanda Bevilaqua revelam memórias de performances que atravessaram suas vidas. Em mim, a exibição provocou todas essas reações, sensações, abalos, arroubos. 

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, repete a voz de Alexandre Roiz logo na abertura: as palavras se aceleram e se fundem, tudo gira, tudo muda. A narrativa de voz e imagem revela-nos um processo de descoberta da própria identidade: "não sou moreno claro, não sou moreninho; a minha pele é preta, a minha raça é negra". Um percurso: de guarda patrimonial, de um patrimônio que era não era dele, quando precisava ser os olhos das outras pessoas; ao estudante de Dança que se deixa arrebatar por uma performance. O rito gera pane no (cis)sistema. Gira a gira em volta da fogueira. A grama verde e o Jambolão preto, preto é o pé que dança sobre a terra: corpo que gira, corpo que cai, corpo que deita, dança. Água mole em pedra dura. Bateu. Furou. 

Jeremias Brasileiro desce a avenida deserta, os trajes do congado, máscara em silêncio ao som do tambor balbuciado na memória. Conta de quando era guarda noturno e viu o congado descendo a Avenida Floriano Peixoto: a figura de uma senhora negra de estatura baixa, guias de cores diferentes no pescoço, a impactante indumentária vermelha e branca, mulher que dançava a frente do terno e não atrás das bandeirinhas. Jeremias rememora o movimento com o próprio corpo. Na tela: a indumentária vermelha gira na máquina de lavar roupas, cor de sangue, cor de dentro de corpo. Atabaques insistentes anunciam que tu vens. De guarda noturno, Jeremias tornou-se um guardião de memórias, o comandante da Festa do Congado. Recolhe acervos. Descobre, anos depois, uma fita VHS: numa rápida passagem, a mulher cujo movimento inscreveu-se em seu corpo.

O canto de notas sem palavras de Fernanda Bevilaqua: paisagens, imaginação. Fernanda fundida ao tronco de uma árvore, enraizada em suas memórias. A lembrança é a de uma peça encenada no que um dia foi o Teatro Grande Otelo, dirigida pelo amigo Wagão, que sabia que estava de partida, do teatro, da vida. Do caule da árvore, Fernanda transporta-se para as cadeiras da plateia. Intensidade e contraste: na tela, o teatro hoje, sua ruína. Fernanda varrendo o chão, descalça, dança que revive Wagão conduzindo o ritual de varrer o palco com os atores: reverência. Na tela um copo vazio começa a se encher de água e não para quando cheio, permite-se transbordar. Uma sala de copos, chuva e pranto, a personagem pega a mala: eu quero ir embora. O corpo de Fernanda, transbordado, é a água e é a árvore.

Deixa eu te contar: a vida vira arte que atravessa a vida que vira arte que atravessa a vida. Olhos marejados, aplaudo em silêncio toda a gente envolvida nessa obra que gira, movimenta, transborda. Jorge Alencar e Neto Machado, os diretores, em concepção conjunta com Alexandre Molina e Marcelo Camargo. Nara Sbreebow e Yuji Kodato, sensibilidades que reconheço. A paisagem sonora de Danilo Aguiar. Os olhos paralelos formam linhas infinitas. Movimentam-se, giram, transbordam. Deixa eu te contar: os olhos já não podem se conter. 


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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