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25/07/2020 às 16h06min - Atualizada em 25/07/2020 às 16h06min

Carteirada

ALEXANDRE HENRY
Eu me lembro até hoje daquela cena esdrúxula, ocorrida há muitos anos. Era noite de domingo e eu tinha saído de casa para comprar um lanche em uma rede de fast food. Enquanto aguardava meu pedido ficar pronto, notei uma confusão e logo percebi o que estava acontecendo. Um sujeito fortão, aí na casa dos trinta anos, esbravejava contra a atendente que havia acabado de entregar as esfirras compradas por ele. “Eu tenho direito!” – esbravejava o moço. Logo pensei: “Mas, direito de quê?”. “Eu quero meus sachês de ketchup agora!” – rosnou o revoltado consumidor, como se tivesse lido meu pensamento.

O cara tinha comprado meia dúzia de esfirras e queria levar alguns sachês de ketchup para casa, junto com a comida. Só que o restaurante era daqueles que vendem seus produtos a um preço bem barato, mas que cobram por esses, digamos assim, acessórios. Daí, como já deu para perceber, surgiu a divergência. O cara não queria pagar pelo ketchup e a atendente não queria fornecer os sachês de graça. A situação saiu de um problema banal de relação de consumo quando o fortão tirou uma carteirinha do bolso, esfregou na cara da moça, disse que era policial civil e ameaçou cercar o estabelecimento de camburões se não dessem os sachês de ketchup para ele.

Sabe aquela coisa da vergonha alheia? Pois foi o que eu senti pelo rapaz. Eu ainda não era juiz, mas já era servidor público havia uns dez anos e nunca utilizara a minha identidade funcional a não ser para me identificar em alguma audiência na Justiça. Talvez por isso me parecia ainda mais estranha aquela cena do policial ameaçando uma balconista de prisão se ela não desse para ele sachês de ketchup. Era algo tão ridículo, tão sem noção, que eu me senti verdadeiramente mal por ele. Se dar carteirada já é algo imoral e ilegal, dar carteirada por causa de sachê de ketchup – Deus do céu! – não dá nem para adjetivar. Já pensou se o cara resolve colocar em prática a ameaça? Pega o telefone, liga para alguns camaradas e diz que precisam montar uma operação para cercar o local e, assim, conseguir o insubstituível molho vermelho. O que será que os colegas diriam dessa “operação”?

Quando me tornei juiz, pouco tempo depois desse episódio, recebi uma bonita carteira funcional. Sabe daquelas com brasão e tudo? Também recebi uma mais discreta, no formato de uma identidade normal. Por alguns anos, carreguei essa segunda comigo, deixando a primeira guardada em casa. Com o tempo, a identificação mais simples também foi guardada e voltei a utilizar apenas o que todo mundo carrega: ou o famoso RG ou a CNH. Aliás, minto: ainda carrego comigo a carteirinha da minha associação de juízes, mas que fica bem escondidinha em um compartimento da carteira. Se perguntam a minha profissão em algum lugar, digo, na maioria das vezes, que sou servidor público federal, já que isso realmente é verdade e basta para a pessoa saber o que faço da vida. Se me pedem mais detalhamento, digo que trabalho na Justiça Federal. Em alguns poucos casos, desço aos detalhes sobre o que realmente faço. Claro, quando dou aulas, escrevo para um jornal e, especialmente, no meu trabalho, é normal que eu identifique meu cargo. Pessoalmente, porém, sou bem mais discreto.

Acho que fiquei marcado pelo caso do ketchup. Se até então eu não pensava em me valer do meu cargo para interesses não profissionais, o policial civil e sua carteirada por ketchup acabaram por sacramentar a minha crença quanto a essa questão. Acho simplesmente ridículo, impertinente, idiota, imoral, ilegal – e mais um monte de nomes pejorativos – utilizar o cargo para qualquer coisa que não seja estritamente ligada ao cumprimento dos próprios deveres desse cargo.

Infelizmente, como vimos em um episódio recentíssimo quanto ao uso de máscara, ainda não relativamente comuns os casos de carteiradas país afora. Eu ouço cada coisa que me embrulha o estômago. É gente usando carteira funcional para furar fila em tudo quanto é lugar, para entrar de graça no estádio, em boates, exposições agropecuárias, para conseguir chegar mais perto de alguém famoso, para não pagar um monte de coisas, enfim, para arrombar tudo quanto é tipo de porta. É uma pena que assim seja. Tirar vantagem ou se portar como superior por conta de um cargo público é não apenas algo que depõe contra a própria pessoa, mas também uma amostra de que ainda precisamos evoluir bastante como sociedade. Isso somente continua acontecendo no Brasil pela permanência da desigualdade social absurda e de um regime quase similar ao de castas.




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