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24/07/2020 às 14h26min - Atualizada em 24/07/2020 às 14h26min

Portas abertas

WILLIAM H. STUTZ
Mudei para um condomínio faz alguns anos. Pequenino, aconchegante, manso. Claro que, como em qualquer comunidade, nem tudo são flores. Aliás, as duas maiores tristezas que aqui tive foram por conta do verde. Podas absurdamente desnecessárias e corte de árvores sem razão alguma. Mas naquele tempo era um apenas inquilino, mesmo assim aprontei o maior escarcéu, denunciei, me indignei ao extremo. Dói ver replicado aqui dentro o que acontece em toda a cidade. A matança sem razão de tantas e tantas árvores pelo poder público, assim como as podas mutiladoras de sua excelência, sem excelência alguma, a sem alma Cemig.

O tempo célere passou e tive a grata felicidade de poder, a duras penas, comprar minha casinha no mesmo condomínio. O canto aqui é especial. Aconchegante não define exatamente o que quero transmitir. O lugar carrega certa magia, posso jurar ver fadas e anjos a caminhar entre nós. A passarada nos acorda cedo, cantos belos e variados fazem o alvorecer diferente, no fim do dia a algazarra se repete como convite a se recolher. Os vizinhos, em sua maioria, são tranquilos, cordiais e de fineza rara no trato com bichos e plantas. É certo que algumas casas ainda não se deram conta da força e energia que estas trazem ao ambiente. Temos também angolas, eternas guardiãs de todos, que a qualquer estranhamento dão sinal, se reproduzem e fornecem ovos. Quem tem como eu um gato, tem a segurança de que não será maltratado por ninguém e eles felinos e perspicazes sabem disso. Repito, é um condomínio pequenino de poucas casas, mas imenso no bem-estar e solidariedade. Não se ouve música alta a ponto de incomodar e o gosto musical eclético nunca chegou a nenhum extremo de mau gosto. Até as eventuais festas (poucas) são tranquilas. Claro, não se trata de um mosteiro budista ou retiro espiritual e acredito que ninguém quer isso, pois seria de um tédio sem fim. Posso quase lhe garantir que, quem aqui mora certamente não vai encontrar esse sossego fácil dentro da cidade.

À noite, três potes saracuras embalam o entardecer, a brisa leve toma outra cor e sombra mansa, como a preparar manto de estrelas. Quem nos visita assusta/impressiona com tamanho silêncio. O vento corre solto. Prazeroso sentar-se do lado de fora, a três passos e se por a observar as estrelas ou, em noite de cheia, brincar com as sombras projetadas nas paredes.

Dia desses, com o aval de todos e ajuda com doação do horto municipal, através de um amigo, consegui plantar 24 resedás rosa no entorno e nas calçadas que ainda eram de terra. Agoraenfim, após bela atitude de nossa síndica, calçadas e canteiros foram feitos e tudo mudou de figura com jeito de zelo, pois o verde decora, acalma e traz vida. Vou continuar minha empreitada. Eles, prefeitura e Cemig, cortam, eu resiliente, vou sempre plantar, mais e mais.

Porém, o que quero falar diz respeito a portas. Desde que aqui cheguei transformei a então casa alugada em uma “casa de smurfs", como certa feita gritou uma criança ao ver a entrada quase tampada de tanto verde, cores, flores e passarinhos. Da janela do quarto eu apanhava imensas e suculentas goiabas e amoras. E olha que é no segundo andar.

Outra vantagem maravilhosa é que aqui se pode manter sempre as portas abertas, só as fechando para sair ou dormir. Coisa de criação, coisa de mineiro. Este ponto por si só já define o bem-estar que este lugar nos traz.

Ressalto que a maioria mantém suas portas fechadas o tempo todo. Não critico. Cada um tem seu sistema. Respeito.

Desde pequeno onde morei, fosse em minha Belo Horizonte de nascimento, nossas repúblicas aqui em Uberlândia ou em Ouro Preto, onde minha mãe morava, esse costume esteve presente. Sua origem vem de longe, norte de minas, de meus avós maternos. As portas foram feitas, no nosso pensar, para permanecerem abertas a receber gente, vento, sol, passarinho distraído e até bicho perdido. Se tiver galinhas no quintal, no máximo uma cancela, com altura suficiente para deixar as penosas de fora e pronto.

Aqui ainda podemos assim fazer com segurança. Entristece-me profundamente ver casas com todos os acessos lacrados a cadeados, tetra-chaves e fortes tramelas.

Confesso, nossos muros são altos, possuem cerca elétrica, câmeras e aquele horrível e tenebroso arame de concertina, como a nos lembrar que não vivemos em uma ilha de tranquilidade. Sim, por toda parte nessa cidade a violência grassa e o medo é uma constante companheira. Foi-se o tempo dos alpendres com cadeiras espreguiçadeiras para a rua observar, cumprimentar o vizinho, tomar um cafezinho com pão de queijo. Sumiu-se o tempo dos portões e muros baixinhos, perfeitos para namorar sem risco de ser assaltado.

Mesmo assim, existem locais onde se pode, pelo menos, sonhar e viajar como se fosse um imenso museu de memórias. Cada um carrega o seu. Aqui em casa meus amigos, as portas continuarão sempre abertas e aqueles que vierem em paz serão sempre muito bem-vindos, com um café coado na hora, dedos de prosa e muita alegria em receber.



Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



 
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