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03/07/2020 às 09h35min - Atualizada em 03/07/2020 às 09h35min

Papagaio

WILLIAM H. STUTZ
Semana de verão invernada, tempo borrascoso. Mas se verão é, como pode ser invernada? Mas assim se diz. Seca ou chuva, as duas estações aqui no cerrado. O resto é Europa. Temos, é claro, a época das flores, das jabuticabas, da filhotada de passarinho. Tem época de folha cair e gramado secar, aí os astutos ateiam fogo em tudo, mergulhando o céu em fumaça.
 
Moda outono-inverno, primavera-verão, tem apelo comercial, mas no dia a dia, acho não. Deveríamos ter apenas moda seca-chuva e depois chuva-seca. Os armazéns de secos e molhados é que estão certos. Esse nome, além de grupo musical, para nossa tristeza dissolvido, poderia bem ser de grife chic. Consultemos Glória Kalil e Danuza Leão. Mas o assunto não é moda, nem meteorologia, é papagaio, o louro famoso por dar o pé.

Toró sem precedentes caía dia desses. Prazer de ficar à janela acompanhando água e vento me vem de criança.

Fazíamos corrida de pingos d’água na janela. Cada um escolhia sua gota e gritávamos com infantil alegria. Criança cria brincadeira mesmo em dia de chuva. Não tinha televisão, nem internet. Restava-nos, prazerosamente, ler e criar. Pena, não consigo mais ver corridas em gotas. Apreciava feliz chuva e vento. A copa do imenso jambolão misturava-se em tranças de amores com frondoso ipê vizinho. Talvez um “quer namorar comigo”? Sacudi a cabeça com força para espantar pensamentos, tão companheiros meus, daquela infância na janela.

Entre uivos fortes do vento e da água, me pareceu ouvir sussurro, lamento longe. Pensei: imaginação minha não para, inventa um monte de um nada. O vento amainou, a chuva, chuvisco. Outra vez um som, agora risada. Tinha coisa lá fora.

Sai à cata. Muito procurar e dei com o dono das vozes. Um belo e bem zelado papagaio boiadeiro empoleirado em galho de sete-copas. Balançando o corpo e a cabeça em feliz algazarra. Chamei, pedi pé, mas nada dele descer. Me remedou com graça e desenvoltura. Deve ter fugido de alguém. Crime ambiental e dilema a ser tratado com cuidado, pois envolve animal silvestre acostumado com retraimento e apego amor mesmo de quem cria. Se pudesse sugerir, diria que seja fiel depositário quem bem trata e já não pode soltar. Animal fica sob bons cuidados e dono protegido. Mais rigor na fiscalização dos que assaltam ninhos para vender filhotes. Esses sim, criminosos.

Pois esse papagaio passou grande temporada pelas árvores de casa. Fartou-se de jambolão, pitanga, jabuticaba e goiaba. Fez amizade com maritacas e tucanos, sabiás, canários, moradores livres do verde ambiente. E, claro, aprontava com todos que por lá passavam. Chamava gente, imitava cachorro. Povo passava, procurava e nada via. Camuflado moleque Arlequim. Deixou-me apurado certa feita. Saí calmo para recolher jornal. Manhã fresca, sol manso e azul gostoso de respirar.
 
Cheiro de sábado. Moça fazia caminhada na rua. Quando passou bem de fronte nossa casa. Gelei pressentindo o que estava por acontecer. Não deu outra. Com toda força dos pulmões lá do alto veio um forte e humano “fiu-fiu”. A moça parou, me deu uma olhada. Foi o papagaio, arrisquei. Olhar rápido para as árvores. Óbvio, nada viu. Se foi pisando duro. Fiquei com a fama. Assim como chegou, foi embora. Aprontando em outros quintais. Tristeza e alívio. Via-me hora envolvido em briga por conta do bicho. Brigar? Respiro fundo, conto até dez.



Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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