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26/06/2020 às 09h45min - Atualizada em 26/06/2020 às 09h45min

Carta aos netos

WILLIAM H. STUTZ
Meus queridos netos/netas. Tenho que citar os dois gêneros se não os excessivos “politicamente corretos” vão cair matando. Poderia usar um X para resolver o caso. Olha o que inventaram! Machado de Assis deve estar a dar pinotes na tumba. Seria tipo netoxs referindo a ambos os sexos, mas como o X foi adotado por posição política de esquerda, aliás com a qual muito simpatizo dependendo de referencial é claro, a turma da direita vai criar caso. Não que isso me incomode nem um pouco com que os reacionários. Nem aí para o pensar deles, mas escrevo para contar o quão radicais se tornaram os nossos tempos, uma chatura sem fim, tempos de correntes de pensamentos horrivelmente dicotómicos e radicais. Um dia vocês vão escutar uma história desse passado muito louco. Queria e quero eu poder contar pessoalmente a experiência pela qual passamos, em um longe 2020. Se não for possível, serão meus filhos, genro, nora e seus outros avôs e avós que também vivenciaram o inacreditável e darão a vocês um testemunho tristemente histórico. Parece escrito de Garcia Márquez de tão surreal.

Tenho que lhes dizer que o bisavô de vocês, meu pai, pôde também, do jeito dele, reservado sobre o assunto, me passar outro relato histórico forte sobre a segunda guerra mundial, sobre os horrores do nazismo e do holocausto. Ele combateu muitos anos no front de batalha. Era da Marinha dos Estados Unidos e viu com os próprios olhos o que muitos hoje negam ter acontecido. Espero que vocês possam resgatar e entender de forma honesta a barbárie daqueles anos negros, nunca podemos esquecer para que não se repita. Mas este não é o foco dessa missiva, apesar de já a terem chamado de insignificante. O tempo, poderoso e soberano tempo, provou o contrário.

Em minha época de escola estudamos e avaliamos muitas situações complexas em várias áreas. Vimos em sala de aula como se deu a evolução das espécies e tivemos, entre outros, Darwin como ídolo. Trabalhamos as artes e seus grandes mestres, enveredamos pelos principais movimentos artísticos e seus expoentes. Aqui no Brasil debatemos com ardor a bela mudança que nos proporcionou a semana de arte moderna de 1922. Para vocês, se não mudou, ficou uma escola estéril, onde mal e porcamente se aprende ler e escrever.

Porém, vocês terão oportunidade de ver tudo isso, pois seus pais são especiais e os guiarão pelos caminhos do conhecimento, da justiça e, como eles, serão íntegros e engajados em lutas contra preconceitos de quaisquer espécies. Saberão se indignar.

Quero lhes contar, netos queridos, sobre uma fase bizarra que todos nós passamos. A pandemia de um coronavírus altamente contagioso e com uma letalidade como nunca tínhamos visto.

De um dia para o outro, o mundo como conhecíamos mudou geral. Pegou o planeta de surpresa e, como sua parente a gripe espanhola, lá em um quase pré-histórico 1917-1918 fez estragos, com mortes inimagináveis. Caso tenham curiosidade e queiram ler, o nome “Espanhola” não tem nada a ver com a origem da doença, mas sim, se deve à imprensa espanhola que “ficou conhecida por divulgar as notícias dela pelo mundo. A explicação para isso tem relação direta com a Primeira Guerra Mundial.”(História do Mundo,
www.historiadomundo.com.br)

Sua mãe, sempre disse que eu sou dramático, que exagero em tudo mas tenho certeza que dessa vez ela vai concordar comigo.
Até os feriados mudaram de data. Nossa senhora da Abadia mudou para 12 de junho, normal é 15 de agosto. O aniversário da cidade adiantou para 16/06. Nessa toada vamos comemorar o Natal em setembro e nem vai ter ano novo, pois este 2020 simplesmente não existiu.

Isso vocês poderão ler em qualquer E-reader ou tablet. O que quero contar é um pouco do impacto que a atual pandemia causou em nossas vidas. Pensem. Quarentena implantada, só podemos sair de casa para ir comprar comida e remédios. Bares, comércios, clubes, transporte coletivo, tudo parado. Praças interditadas, ruas desertas e um silêncio sepulcral. O desemprego tomou conta, milhões desempregados, passando fome e desespero. Ao mesmo tempo o serviço de saúde não dá conta da demanda, com hospitais lotados e filas de espera por um respirador. A parte mais trágica são as mortes. Milhares e milhares sob os holofotes da imprensa que não dá trégua e só mostra tragédia. Quando se tem uma folga e são feitas as tais flexibilizações com abertura de alguns setores, o povo sai aos montes pelas ruas, como se nada estivesse acontecendo. Fazem festas, não usam máscaras para se protegerem e muito menos protegerem aos outros. Aí vem uma nova onda com aumento de pessoas infectadas e joga todo mundo em casa outra vez. Mais mortes. Nada aprendemos com a “Espanhola”. A história é cíclica e nos mostra isso. Agora se vive a loucura da busca por uma vacina ou tratamento e o que vemos? O poder do dinheiro. Grupos se unindo para ver quem primeiro acha alguma solução e de preferência cara. O lucro acima das vidas. Nada muda mesmo.

Nada do pouco que aqui conto vem para trazer pânico a vocês. E o muito a contar, contarei pessoalmente um dia. Entretanto, continuarei a escrever relatos de um tempo que transformou o mundo, mas que parece não transformar o ser humano. Fico quieto aqui, paciente, esperando o nascimento de vocês. Sei que seu pai e sua mãe os têm em planos e a hora de chegarem é a hora que eles acharem certo. Não tenham pressa, nesse meio tempo vamos lutando para que encontrem um mundo mais bonito, mais justo, mais perfeito, onde reine a paz, o carinho entre as pessoas e um relacionamento do bem com o planeta e com todas as criaturas viventes. Beijos. Os amo desde já.



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