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24/12/2019 às 08h13min - Atualizada em 24/12/2019 às 08h13min

Se tudo ruir

ENZO BANZO
Fim da década. Controvérsias à parte, se o decênio se encerra no ano que termina em nove ou zero, o fato é que nos lembramos dos anos 80, 90 ou 2000 pelo penúltimo dígito. Ou há quem diga que a Copa de 70 foi na década de 60? Finda a década, e a cada conjunto de dez anos costumamos associar um modo de ser, pensar, vestir, um estilo musical, um cenário político, social, econômico.
 
Lembro do nosso último fim de década como se fosse semana passada, e me chama a atenção o quanto encerrávamos mais otimistas os primeiros dez anos do milênio. Ou ingênuos. Quem imaginaria, em 2009, que no último ano da década seguinte, uma entrevista com o Presidente da República se pareceria mais com um programa de humor tosco, no qual um senhor de fala agressiva desfere impropérios como: "você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso eu te acuso de ser homossexual"; ou ainda: "pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?" Se nos mandassem um vídeo de 2019 para 2009 com estas imagens, pensaríamos, certamente, que 2019 seria o fim do mundo, ou ao menos o fim da humanidade, naquilo que compreendemos que haja de positivo no humano.
 
Tento procurar alguma luz nestes tempos obscuros. "Se tudo ruir deixa entrar o ruído", profere o compositor paulistano Gustavo Galo em sua parceria com Paulo César de Carvalho. Seu último disco, que leva esse nome, talvez seja um dos que melhor cante a pedra desse final de década. Porque, olhando ao redor e para trás, a sensação é a de que tudo ruiu. Mas, canta Galo, "há muito o que ouvir, e não só com o ouvido".
 
Artista antena da raça, captando o seu tempo e o que virá, Gustavo lança enigmas e pistas sobre um possível modo de ser e estar neste mundo, construindo uma paisagem sonora e poética que não abre mão de ser inventiva, climática, destoante: "desabrochar, desobedecer, descontrair... destruir, desabar, desaparecer... desfeito o eu ver outro céu... desabrochar". São os versos que abrem o disco, evocando a possibilidade de reconstrução pela queda: refazendo tudo, refazenda, como já cantou Gilberto Gil.
 
Galo convoca ícones que afirmam uma maneira de se portar em território adverso, como na livre dança de "Nijinski", em conjunto à voz de Otto: "você não quer que eu dance solto assim... eu sei, respondi, continuei dançando sim". Tive a alegria de fazer a música para esta canção e de receber uma gravação que ia muito além do que eu visualizava: pop e ritual, lírica e vigorosa. Não adianta ralhar pra parar a dança. Continuaremos dançando, sim.
 
Nestes tempos de fim (de década, dos tempos, de esperança) a voz de Galo, junto do profundo canto místico de Alzira E, fecha o disco tematizando a reinvenção do final das eras, ponta de luz onde parecia não haver mais o que ver, nos versos do poeta arrudA: "os astros dançam sua dança e reinventam as distâncias... esquecidos de que todo fim é generoso". Se a década não foi generosa, que o seja o seu fim, nas infinitas possibilidades que abre para o recomeço.
 
E, se é fato que as décadas costumam levar dois ou três anos para assumirem sua identidade própria, sabemos que não serão os fogos do próximo Réveillon que resolverão os problemas. E não será o simples passar do tempo que dará fim ao absurdo em que nos metemos. Aqui, de onde falo, neste espaço em que a cada 15 dias tenho a oportunidade de iluminar alguns trabalhos artísticos cheios de luz por dentro, e quase sempre longe dos holofotes, o que posso dizer com segurança é que a arte não para, assim como o tempo. E se a arte existe, o ruído entra e o real resiste, como canta Arnaldo Antunes em uma de suas mais recentes composições. E o que é este real? Um mundo em que torturadores, milicianos, neonazistas, homofóbicos, matadores e desmatadores se resumam à mais inimaginável ficção. É o mundo que almejo, desejando a todos nós, um feliz final de década, em 2029.


*Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.






 
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