Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
30/05/2019 às 14h29min - Atualizada em 30/05/2019 às 14h29min

POTESTADE: memória de feridas abertas

SAMUEL GIACOMELLI | GESTOR CULTURAL
“O silêncio pós regime militar no Brasil, e a predileção por temas mais amenos na cena contemporânea, evidencia no ambiente teatral a falta de memória histórica e social, que se instaura em nossa sociedade colonizada”
 
Potestade, palavra pouco usada em nosso cotidiano, carrega em seu significado a qualidade ou condição de quem manda, de quem exerce domínio sobre algo; potência, força, poder; ou mesmo indivíduo cujo poder e riqueza o tornam soberano de uma nação; potentado; e ainda, Ser de poder absoluto, supremo: as potestades gregas; Deus, divindade. Anjos, demônios. Ditadores e suas ditaduras!

Tratar de temas políticos em cena, especialmente acerca da ditadura militar brasileira e suas derivações traumáticas, parecia ultrapassado após a década de oitenta. A herança do teatro político brasileiro foi confiada quase que única e exclusivamente à dramaturgia produzida nos tempos de repressão ditatorial, tornando-se ociosa a partir do desvelar de cortinas democrático.

Quando olhamos para o teatro de outros países latino-americanos nos deparamos com uma realidade distinta da nossa. As mazelas de ditaduras e conflitos políticos são amplamente expostas e reatualizadas em sua dramaturgia, como em Malayerba no Equador, Yuyachkani no Peru, La Candelaria na Colômbia, só para citar alguns, que assumem em sua dramaturgia uma implacável tentativa de manter acesa a luz sobre temas vitais à memória política e social de seus países como o desterro, a busca por corpos de pessoas desaparecidas, o estreitamento entre os interesses de governos e o narcotráfico, etc.

Não obstante foi justamente na obra de um dramaturgo argentino que Narciso Telles e André Carreira se apoiaram para levantar o espetáculo solo “Potestade” (2014), apresentado nos dias 18 e 19 de maio no Circuito Independente de Teatro de Uberlândia (Citu), e que trata de maneira dialética acerca de uma das mais comoventes sequelas da ditadura militar argentina, o desaparecimento de crianças, filhas(os) de jovens guerrilheiros, raptadas após terem seus pais torturados e mortos por agentes do governo, representadas desde 1977 pelas Avós da Praça de Maio, que buscam incansáveis por seus desaparecidos. As crianças eram levadas e adotadas por “pessoas de bem” como o personagem sem nome, 53 anos, médico legista, ex-jogador de rúgbi, casado, que vestindo as ações de Narciso nesse espetáculo nos apresenta na mesma figura a vítima e o algoz, a princípio um homem comum que tem sua filha retirada do convívio do lar, para posteriormente se revelar como um dos facilitadores desta história de horror que afligiu inúmeras famílias.

Sintomaticamente, o silêncio pós regime militar no Brasil, e a predileção por temas mais amenos na cena contemporânea, evidencia no ambiente teatral a falta de memória histórica e social, que se instaura em nossa sociedade colonizada, acostumada com a naturalização da dominação, alienação dos desejos, subtração de direitos e perdão aos pecados dos algozes.

Quando Narciso Telles estreava seu primeiro espetáculo solo, Memorial de Silêncios e Margaridas (2010), não imaginávamos que poucos anos depois nosso país estaria submerso na lama do atual quadro de desgoverno político. Ele trazia para a cena a figura de um “ex” torturador desassistido, menosprezado e à beira da morte, mas ainda vivo (ou morto-vivo?), revisitando a partir de seus delírios e lembranças sádicas os horrores cometidos com absurda desafetação. Buscava-se ali manter viva em cena, ao menos por alguns minutos, a memória desses tempos de trevas, que pareciam então tão distantes de nossa realidade. Anos depois temos “em cena” um presidente que elogia a tortura e homenageia torturadores.

 
 
Sofremos de uma amnésia coletiva, arraigada em nosso DNA social. Ao contrário de muitos países que também viveram momentos traumáticos em sua história, preferimos tapar os olhos para o passado, não tocar nem cuidar da ferida aberta, esperando que a mesma suture sozinha. A dor não passa, mas acostuma-se a ela, e após negar sua existência, sequer lembramos que está ali, viva, aberta, crescendo, e espalhando-se feito metástase pelo corpo doente.

*Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90