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10/05/2019 às 08h54min - Atualizada em 10/05/2019 às 08h54min

Letras, mulheres e bordados: a polissemia feminina refletida nas águas do tempo

MICHELLE CABRAL | ATRIZ, PESQUISADORA E PROFESSORA DE TEATRO NA UFMA
O espetáculo Tempo de Águas abriu no último fim de semana o Circuito Independente do Teatro de Uberlândia (Citu). Encenado pelo Grupontapé (1994), o espetáculo tem texto da dramaturga argentina Patrícia Zangaro materializado em cena pelas atrizes Katia Bizinotto e Katia Lou, e é dirigido por Inês Peixoto, atriz do Grupo Galpão (MG). Salta aos olhos a delicadeza com que o texto foi tratado pela montagem do grupo. É característica forte na dramaturgia da Patrícia Zangaro os diferentes aspectos simbólicos com que a autora trata o espaço em suas obras, destacando as fronteiras, os deslocamentos e os lugares de pertencimento. Contudo, em Tempo de Águas, os aspectos espaciais estão subordinados ao tempo. É ele, o “tempo”, que conduz a transformação das personagens: duas mulheres ligadas por um homem. Mulher jovem (Katia Bizinotto) é filha e esposa. Mulher velha (Katia Lou) é sogra e mãe. Obrigadas por uma enchente a conviverem sozinhas, isoladas dos outros, encontram-se numa relação tensionada pelo espaço (casa da sogra) e condicionada pelo tempo (tempestade/enchente). Neste ambiente doméstico, o universo feminino se apresenta cruel e determinante, revelando aos poucos ao público que observa em silêncio um “ser” mulher em toda sua complexidade.

O confronto inicial pela disputa do “homem” nada mais é que a busca por um sentido às suas próprias vidas, até então sujeitas aos desmandos do pai e ao amor do filho. Este pai opressor é presente na fala da personagem “jovem”, que busca no amor do homem um sentido para sua própria existência; por sua vez, a personagem “velha”, que já foi filha e mulher de alguém, encontra no papel de mãe o sentido de sua existência. O que a princípio é motivo de atrito entre elas, ou seja, a divisão deste homem, ao mesmo tempo marido e filho, é também o que as unifica, a percepção gradual de que podem viver sem ele. O mesmo homem ocupa os dois lugares. Uma ausência onipresente na vida daquelas mulheres, as águas, o divisor entre dois mundos.

Enquanto chove lá fora, o tempo para dentro da casa aproximando diferentes gerações, a Mulher (esposa) e a Mãe (sogra). A mãe vê a nora como aquela que afasta o filho, mas naquele tempo/lugar a nora é tudo que lhe resta. Uma mulher é o amparo de outra: confortam-se e apoiam-se; enquanto a figura dominante do homem (pai, filho e marido) se dilui e se esvai na água.

A sonoplastia, a iluminação, assim como os figurinos, são perfeitamente aplicados ao contexto do espetáculo. O cenário minimalista se ampara na reprodução realista de um lugar comum, a casa, com sua sala, apetrechos de cozinha e outros elementos cenográficos, que nos desenham um ambiente sóbrio e modesto. Destacamos a porta de entrada da casa, esta assume na encenação um papel importante, que no jogo simbolista da dramaturgia, é ampliada. Em alguns momentos não se resume mais apenas à porta da casa, mas ao passado e ao presente, tornando-se o “espelho” da vida e da história daquelas mulheres. É a ele que as mulheres se remetem para ver o que se passa do lado de fora e também para vislumbrar a possibilidade de um futuro e/ou de uma libertação. Ao final, a porta de acesso à casa é o portal para um novo mundo, um mundo de possibilidades.
A encenação, de um modo geral, poderia ter sido um pouco mais criativa, utilizando as infinitas possibilidades cênicas que poderiam ser apropriadas para desenvolver as potencialidades do simbolismo como estética, haja visto que o teatro é o lugar da metáfora e o tema trazido à cena não se esgota, sobretudo, na contemporaneidade. Um ponto alto da encenação é o manto de letras bordadas que simboliza o aprendizado. O momento é muito bonito e cheio de significados, porque para aquelas mulheres as palavras e os pensamentos eram bordados em horas e horas de silêncio e resiliência.

Apesar da encenação um pouco tímida, a atuação das atrizes merece destaque: muito bem em cena, é visível a afinidade entre as duas. O trabalho da direção foi mais atencioso nos detalhes da interpretação das atrizes que trabalham muito bem o tempo da peça que, propositalmente, é um tempo de espera. A corporeidade e os gestos foram bem cuidados, hibridizando um corpo naturalista representacional com uma corporeidade simbólica nas movimentações gestuais e coreografadas.
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