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24/08/2018 às 08h50min - Atualizada em 24/08/2018 às 08h50min

A velhinha

“As pernas doem de tanto andar. Vem do Dom Almir de ônibus, de graça, pedir coisas no Centro porque lá no bairro ninguém ajuda, todo mundo precisa”

ANA MARIA COELHO CARVALHO | PROFESSORA E DOUTORA EM ECOLOGIA
Vocês não conhecem a velhinha que eu conheço. Pequenina, com cerca de 1,10 metros e uns 30 quilos, naquela fase da vida que a gente vai encolhendo, encolhendo, até sumir. Ela tem mil rugas na face, pescoço e braços. Rugas oblíquas, transversais, côncavas e convexas. Esculpidas em volta da boca, acentuadas e marcadas. São as cicatrizes da vida, que parecem contar histórias. É a vida que vai embora. A boca murchinha, virada para dentro, sem dentes. Olhinhos vivos, pretos e espertos.

Ela se chama Angelina Maria e mora no Bairro Dom Almir. Sempre vem à minha porta pedir cobertor, blusa de lã e lençol. Nem sei se devo, mas dou tudo. Dizem que dar esmolas tira a dignidade das pessoas, mas no caso da velhinha, penso: -“E se fosse a minha mãe?” e não resisto. E Jesus disse: -“Em verdade eu vos digo, tudo o que fizeres a um destes meus irmãos, mesmo aos mais pequeninos, é a mim que o fazeis”. Sei também que precisamos praticar a caridade e a compaixão e que existem milhões de brasileiros castigados pela miséria e pela fome.

Acontece que um dia vi a velhinha andando pelo bairro com uma trouxa enorme de coisas que ganhou. Um pensamento malicioso, de que a velhinha estava vendendo as coisas que ganhava e que nem precisava de ajuda, passou pela minha cabeça. Em seguida ela voltou e pediu outro cobertor. Criei coragem e disse que já tinha dado um para ela e que um cobertor dura uns 20 anos, que o meu já tinha 15 anos. Ela gemeu alguma coisa e foi embora.
Passados alguns dias, novamente a velhinha tocou o interfone. O meu neto foi correndo atender, topou com a velhinha enrugada, deu um grito de terror e voltou assustado. A velhinha quase morreu do coração, desistiu de pedir algo e foi embora, rápida e ligeira.

Mas na outra semana regressou. Chegou de vestido de chita estampado e lenço de seda cobrindo os cabelos brancos. Fui conversar com ela, olhar nos seus olhinhos miúdos. Pediu um lençol e uma fronha. Perguntei para que e ela explicou, aos arranquinhos, balançando o pescoço enrugado, que o neto de 20 anos “mexe com estas porcarias que agora todo mundo mexe”, já foi preso pela polícia e está internado. Ela precisa levar a roupa de cama e participar das reuniões, pois a mãe dele é doente, manca de uma perna e tem desmaios. Disse que é analfabeta, teve oito filhos, três deles e o marido já morreram. Toma a limonada que levei e fala que sofre muito, muito. As pernas doem de tanto andar. Vem do Dom Almir de ônibus, de graça, pedir coisas no Centro porque lá no bairro ninguém ajuda, todo mundo precisa. Pergunto quantos anos ela tem. Responde com olhar maroto, dando uma risada banguela, que tem quase cem. Depois de um longo papo, dou o lençol e a fronha e resisto ao ímpeto de chamá-la para morar comigo. Ofereço-me para procurar algum abrigo para ela morar, mas ela diz que não pode, precisa cuidar da família. Vai embora, miudinha, com o vestido de chita balançando ao vento.

Fico olhando e pensando na multidão de idosos desamparados que não têm uma velhice digna. O envelhecimento em si é um evento natural em que as rugas na face poderiam contar histórias bonitas e os cabelos brancos deveriam ser homenageados e respeitados. Mas as rugas da Angelina Maria não contam histórias bonitas. São dores caladas que pedem esperança e dignidade. Logo ela vai voltar e ainda não sei o que vou fazer.
 
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