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30/07/2018 às 12h20min - Atualizada em 30/07/2018 às 12h20min

Revisores

WILLIAM H STUTZ | COLUNISTA
Não dá para viver sem eles. Nossa pressa de escrever, de segurar o pensamento pela barra da saia ou pelo último fio de cabelo, nos leva a cometer assassinatos dignos de prisão perpétua contra a nossa maravilhosa e complexa língua pátria. Acentos não colocados, vírgulas em excesso, crases e até alguns extintos tremas, enfiados por um corretor automático louco e sem juízo, aparecem. Um aranzé sem fim. Acho que todos que se arriscam a escrever padecem disso. O mais douto dos seres escreventes carece em algum momento em sua vida de um revisor imparcial e competente. Feita a catarse, passada a tempestade cósmica de ideias se cruzando em brilhantes/deslumbrantes cometas, bandos de pássaros em revoada migratória, vem o cansaço. Não dá para reler na hora, pois se o fizer muda tudo.

Se der tempo reserve o texto por alguns dias, coberto com pano de alva seda, a marinar em algum canto. Feito isto o encaminhe para a fornada final, para releitura. Aqui entra o paciente revisor que dá brilho e forma a nossa arte. Depois é só degustar ou desprezar se sentir que errou tempero. Por anos tive uma amiga revisora fantástica. Com ela muito aprendi. Foram muitas e muitas trocas. Como era bom e equilibrado. Nunca a conheci pessoalmente, acreditem se quiser, pois tudo era feito por meio da mágica tecnologia. Pessoa especial e tranquila. Mas como tudo tende a acabar, com nossa parceria não foi diferente. Certa feita ela se recusou tempestivamente a revisar um texto no qual falava de passarinho, de molecagem de criança inocente. Na infância tínhamos por sistema pegar pardais em arapucas, pois estes espantavam nossas cobiçadas companhias de quintal, sempre soltas e cuidadas em cochos elevados de quirera, frutas, alpiste e painço. Coleirinhas, papa-capim, canarinhos da terra ou chapinhas, como os chamávamos por lá, bicos-de-lacres, sairas de mil cores e tamanhos, sabiás e até tucanos, gralhas e tais, apareciam.
Mas era só chegarem os urbanos pardais que acabavam com tudo. Depois de capturar em nossas arapucas os danados, arrancávamos as penas do rabo e os soltávamos cotós que só. Cabeça de criança, a ideia não era maltrato, era espantá-los para longe.

Aí deu zica. Minha amiga por ser protetora de bichos como nós mesmos, não aceitava a ideia de revisar tal prosa. Isto também é demais, pensei. O revisor é parceiro, mas não é ator da criação alheia.
Negou? Não quis se sentiu ofendida? Relevo de certa forma, por ser ela pessoa tão urbana quanto os pardais e por desconhecer a infância de crianças das Minas, que já nascem em grandes quintais cheios de bicho e ar puro. Tudo bem, direito dela, mas findou linda parceria, já que querer interferir em criação alheia é meio demais. Deixo não. Será que minha amiga toparia revisar um livro sobre as barbaridades do nazismo? Sobre os horrores das crianças morrendo de fome pelo mundo? Ou com gente pode?

Careço dizer que ainda gosto por demais da minha antiga revisora e só tenho bem querer por ela. Talvez algum dia nos reencontremos ciberneticamente afora. Torço sempre para que seja superfeliz, ela merece.
Ganhei caminho solo. Sofrência, mas trás crescimento. Hoje minha parceira em revisão, além de entender o meu inventar de palavras, conhece bem a liberdade do meu criar. Sugestões boas são muitas e isto faz parte. Também, não poderia ser de outra maneira. Fomos casados por 33 anos e, como bons amigos que continuamos, conhece bem minhas rabugices no inventar.

Ela me cobra em chocolates. Uma barganha gigante, pois tende a inflacionar o mercado. Ofereço um, quer dois. Se for urgente, pasmem, me cobra até cinco. Um abuso. Hora vou ao PROCON. Doce, mas abuso. Curvo-me sempre, faz parte.
Conhecer a falta de lógica onde ela não existe, o sonhar e o jeito do outro é o que cria parceria. Porém, repito, já pensou se os grandes escritores dos clássicos tivessem que se submeter aos caprichos do faço não faço de algum revisor? A Ilíada estaria no primeiro verso e olha que Homero escreveu mais de quinze mil. Ou ainda não haveria registro daqueles cinquenta dias da guerra de Tróia: Ah não, Aquiles um semideus ficar furioso? Nunca. Paz e amor cara! Quanto machismo. Sequestrar Helena? Que mulher se deixaria levar assim? Imagino Homero de saco cheio e pensando: ─ Quer saber, vou escrever na areia! E ainda, Iracema não andaria nua, assim como Tarzan usaria calça legging camuflada.
Pois eu, aposentado, já estou estudando para nova profissão: Revisor de fábrica de macarrão de letrinhas. Aí sim ficarei independente. Quem sabe monto uma gráfica no futuro?
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