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22/12/2023 às 08h00min - Atualizada em 22/12/2023 às 08h00min

Retratista do entardecer

WILLIAM H STUTZ
A tarde esquentou em quentura difícil.

O casal de papagaios que faz rota anos seguidos bem aqui no meu céu passou agora, mais tarde com o entardecer quente até para voo.

As angolas passam em fila indiana. Ou seria fila africana? Coisas das origens? 

Passam divulgando uma fraqueza que nem existe. Tô fraco, tô fraco... tá nada, tenta pegar! Capote, Cocá, cada canto um nome, o bicho é o mesmo.

Um casal de maritacas chegou em silêncio barulhento e fez ninho rente ao telhado vizinho.

Os pássaros pretos começam seu desafio canoro antes da hora. Será disputa de lugar ou namoradas? As monogâmicas maritacas se juntam em conversa de fim de tarde. Dia quente, né? Ô! Responde outra.

A pomba do bando da velha árvore dá com a asa em gato que se atreve a aproximar. Ele desce, olha para os lados. Será que alguém viu?

Lambe as patas, coça focinho em frustração e vergonha. Trinca-ferro, trinca! Sabiá discreta canta baixinho na velha antena de televisão torta e com poucos canos em desdentada espinha de peixe - lembrei de Bye bye Brasil. Só para refrescar ou contar para quem não sabe, não viu, recomendo e muito. Direção de ninguém menos que Cacá Diegues e Leopoldo Serran. Músicas de Roberto Menescal, Chico Buarque e Dominguinhos. Só aí paga o filme e certeza de coisa boa. E o elenco? Pedra 90! 

Uma sinopse, bem sinopse: “Salomé (Betty Faria), Lorde Cigano (José Wilker) e Andorinha (Príncipe Nabor) são três artistas ambulantes que cruzam o país juntamente com a Caravana Rolidei, fazendo espetáculos para o setor mais humilde da população brasileira e que ainda não tem acesso à televisão. A eles se juntam o sanfoneiro Ciço (Fábio Jr.) e sua esposa, Dasdô (Zaira Zambelli), e a Caravana cruza a Amazônia até chegar a Brasília.” (em www.adorocinema.com).

Retomo a pintura do entardecer. Agora se faz noite.

O calor produz viagens na cabeça da gente. Isso tudo para contar que nas antenas abandonadas se empoleiraram vários Tesourinhas-do-campo. Pareciam cansados. 

Logo as estrelas furam o escuro de céu avisando toda gente: a noite vai ser quente, quente...

Parece que vi um clarão lá longe. Poderia bem ser chuva. Era não. O ar morno balançava as cortinas, num lento de marola batendo em cascalho beira-rio. Começava cá e se ia a rolar até o fim da sanefa de madeira de lei antiga, de floresta que nem mais existe, afogada que foi pela imensa represa de Água Vermelha, achada jogada em paiol de fazenda, lá beirando o Mato Grosso.

Fumaça escondeu estrelas. Durou pouco. Bordaram os céus ligeiras novamente. Uma lua a sorrir torto apareceu, torta.

Tentei dormir. Mas agora o silêncio era tamanho que se fazia escutar junto a cantata de grilos, sapos, saracuras e, claro, em vocal de apoio entrecortando-as, as Angolas. Quem mais? Sono leve delas. Eita!

Agora ouvi um trovão e as três potes cantaram alto, a plenos pulmões, e seguras. Sim, vai chover. Abençoada seja a previsão delas. O mundo geme em calor. Parece remédio ardido de passar em machucado. 

Tentei ler. A cada frase outra viagem. Entrava nas histórias e me via a recitar junto com o cavalheiro da triste figura.

“À força de tanto ler e imaginar, fui me distanciando da realidade ao ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivo".

Fecho o Kindle. O escuro da noite aproveita e invade todos os espaços e me abraça. Não fosse o calor me deixaria levar. Abro novamente o Kindle e o escuro foge triste e se põe a me observar da janela, mas afastado, arredio. Passo as falsas páginas veloz e me deparo com Nobre Cervantes. Peça o que quiser que eu pago. Um bom vinho, que assim seja! Garçom, por favor uma taça de seu melhor vinho para meu ilustre visitante. Ele, como tantos outros, tem o poder de levar a lugares mágicos!

“A liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão”. 

Sentado ao lado do Cavalheiro da triste figura e Sancho, próximo à fogueira, vejo a dança de suas sombras contorcidas nas pedras e copas das árvores – em corisco me veio à lembra A Caverna de Platão.

Ouço atento: “O medo é que faz que não vejas, nem ouças porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos, e fazer que pareçam as coisas outras do que são!”

Acordo suando em bicas. Agarro ávido minha companheira garrafa d'água noturna. O “livro” aberto no peito. Pensativo, me deixo levar. O calor agora é da noite ou da fogueira? Desperto pela manhã com canto dos galos ao longe e, claro, as Angolas madrugadoras, grandes guardiãs.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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