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25/07/2020 às 15h57min - Atualizada em 25/07/2020 às 15h57min

Nutricionismo e o fim do bolinho de chuva

ANGELA SENA PRIULI
Olá!!! Gente, imagine meu desespero ao ler esse título em um texto de um médico que respeito muito? O Dr Luiz Carlos de Oliveira Jr é aqui de Uberlândia, é cofundador da MEV Brasil (Medicina de Estilo de Vida), psiquiatra, cientista e professor na UFU. Precisei compartilhar com vocês para refletirmos sobre nossas memórias e nossa saúde... Segue o texto:

O bolinho de chuva… Era só o céu ficar nublado e a chuva avisar que estava perto minha mãe preparava o bolinho de chuva coberto com açúcar e canela. Naquela época, em que o açúcar não era tão perigoso e a fritura era mais inocente, ou nós éramos mais ignorantes sobre os perigos dos carboidratos e lipídios, o dia de chuva era um dia especial, doce e carinhoso. Deitado no sofá, com aquela coberta quentinha, vendo desenho na televisão enquanto a água lá fora caia de mansinho, comendo… o bolinho de chuva!

No domingo era dia de macarrão com frango e maionese na casa da minha vó. Começava matando a galinha, passando-lhe a faca no pescoço como se fazia desde o princípio da humanidade, antes que matar um animal para comer se tornasse um crime, depois escaldando e tirando as penas para sapecar a pele e depois picar as partes. Enquanto isso os tomates já cozidos eram amassados para fazer o molho de tomate, como se fazia antes da era dos molhos prontos “sabor tradicional”. E juntando tudo, frango com açafrão da terra, macarrão com molho, queijo minas ralado e a maionese, esse era o gosto e o cheiro do domingo para coroar mais uma vitória do Senna na Fórmula 1, depois da missa das crianças na paróquia do bairro.

De tarde tinha o café ralinho e doce, o pão de queijo feito em casa e de quebra bala puxa-puxa feita com açúcar cristal e umas gotinhas de limão. O ponto da bala puxa-puxa era o segredo, quase alquímico, testado gota a gota na água fria.

A infância é o estoque de felicidade e saudade da vida. A maior parte dessas lembranças tem cheiro e sabor de alguma comida feita em casa. A maior parte dessas lembranças tem imagens e sons de pessoas na cozinha ou ao redor da mesa. A família e os amigos nós reunimos ao redor da comida. A palavra companheiro está aí para lembrar isso. São companheiros aqueles que compartilham o pão, no latim panis.

A quase totalidade da nossa vida social se constrói em torno da refeição e da comida. Aristóteles dará o veredicto de que o que move o mundo é a fome. E mesmo que hoje se diga que é o dinheiro, esse na verdade e no fim serve para saciar a fome de muitas coisas, confirmando que os gregos continuam muito espertos.

Muito antes, quando nem sabíamos que éramos sapiens e muito muito antes de termos as provas de que não somos tanto assim, nos reunimos ao redor das fogueiras e das carcaças nas sacadas gourmet das cavernas. Esse hábito, filho da necessidade biológica, moldou nosso comportamento e não conseguimos até agora fugir da mesa, seja para a alegria ou para a tristeza. O básico e necessário gesto de comer para se manter vivo só ganhou mais importância, ritualidade, refinamento, sagrou-se nos altares e do desjejum ao jantar tornou-se o eixo central da vida.

Apesar de não conseguirmos ainda fugir da mesa, contaminamos a alimentação com a tragédia da nossa história. Desde os gregos, de novo eles, a tragédia humana é tentar fugir de quem somos, subvertendo as coisas em seus meios e fins, o que eles chamavam de hibris. Cada vez mais distantes de nossa natureza e da natureza, sistematicamente procuramos negar de onde viemos. A comida cada vez mais distante do natural, congelada, empacotada e enlatada, quase não consegue fazer referência à sua origem. Ela até que se esforça com uma foto tão artificial quanto o aroma artificialmente idêntico ao natural ou com algum aditivo que tente realçar o sabor e maquiar a cor. Já se repetiu à exaustão de que em nosso tempo as crianças acreditam que as cenouras vêm do supermercado, o milho nasce em latas e não façam a menor ideia de que a coxa da galinha pertenceu a uma galinha. É o que se espera de uma espécie que conseguiu dizer que as crianças eram entregues pelas cegonhas e não atravessando o canal vaginal de suas mães no parto.

Estamos dando o último passo nisso, o fatal e derradeiro. Estamos convertendo a alimentação em nutrição apenas. Os alimentos não valem pelo que são mas apenas por algum nutriente. Alguns são execrados por conterem algum composto que profane sua pureza nutricional. O que antes era parte natural da comida agora é tratado como um contaminante medonho. À maneira dos alimentos certificados próprios para grupos religiosos mais ortodoxos agora também nos acostumamos com aqueles sem impurezas animais para veganos preocupados com os males físicos, espirituais ou morais da carne. Isolados, hidrolisados e purificados, os nutrientes nos são oferecidos em pós mágicos que, ativados pelo agitar místico nas coqueteleiras, nos dão o poder de emagrecer ou ganhar massa muscular após apenas alguns minutos de esteira ou três agachamentos no Smith.

Não nos sentamos ao redor de potes de Whey protein ao final de um dia de caçada, não contamos histórias de nossos heróis inspiradores comendo barras de nozes e cereais, não relembramos nossos antepassados em jantares rituais livres de glúten e lactose, não brindamos nossas conquistas com isotônicos. Ao trocar a alimentação pela neurose nutritiva perdemos parte de nossa humanidade. O símbolo do nosso tempo, que esforça-se por negar sua natureza e a realidade, essa implacável e invencível inimiga que insiste em nos frustrar, será o mais impossível dos sanduíches: o pão integral sem glúten, com baixo índice glicêmico, um hamburger de carne sintética criada em laboratório, um queijo sem lactose feito com leite de vacas criadas com ração orgânica, tão orgânica quanto as alfaces e tomates hidropônicas que o acompanham.

Em breve não saberemos de onde viemos, não tomaremos conhecimento de nossa história, perderemos o respeito pela natureza que nos nutre. Ficaremos cada vez mais neuróticos por não conseguir reconhecer a origem dos comportamentos primitivos que temos e ainda hoje influenciam nossa vida. Eles serão passados sem nome ou rosto e por isso muito mais perigosos.

Nossas crianças acabarão por ter apenas a lembrança do prato congelado que suas famílias servem no almoço e saudade do tempero daquela comida in box pedida pelo aplicativo do celular que em breve será responsável também por entregar as crianças já que as cegonhas não serão uma boa forma de esconder essas verdades tão desconfortáveis e vergonhosas da natureza. Ninguém mais terá saudades do bolinho de chuva, tão tóxico, feito de ovo rico em colesterol raptado de uma galinha, da perigosa farinha branca de trigo, frito em óleo e coberto da mais perigosa das substâncias do nosso tempo, o açúcar. Salvação terá apenas a canela que é termogênica e ajuda a queimar gorduras.

 Fonte: https://www.mevbrasil.com/post/nutricionismo-e-o-fim-do-bolinho-de-chuva




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