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23/05/2020 às 10h09min - Atualizada em 23/05/2020 às 10h09min

A Rodrigo, com amor

IARA BERNARDES
Um choro constante durante a noite, mãe de primeira viagem, correu e levou o filho ao médico: raio-x, ultrassom e um diagnóstico que nenhuma mãe quer ouvir. Gente de cidade pequena, há 35 anos, tinha que ir para São Paulo em caso de urgência e assim foi feito. Chegando lá, tudo parece se desenrolar bem: consulta na segunda, exames na terça, cirurgia quarta, porém, infelizmente, nada foi feito, o procedimento era arriscado demais.

Rodrigo tinha um ano e foi diagnosticado com sarcoma na região pélvica, entre exames, tratamentos, quimioterapias e soroterapia foram dois anos. Sua mãe Rachel, na época com 21 anos, acordava no meio da noite para observar o filho, ia se despedindo aos poucos, colocando sua dor “no bolso”. Nesse período se deslocava entre Alfenas e São Paulo para acompanhar o tratamento do pequeno e dentre todos os acontecimentos, os episódios mais marcantes foram ouvir o filho gritar “mamãe” quando ela não podia acompanhá-lo em alguns procedimentos e ao levar o pequeno na praça e perceber as outras mães afastando as crianças de seu filho, por medo ou preconceito - a dor da ignorância alheia talvez doa mais, pois é a que beira a falta de humanidade. Durante os dois anos do tratamento ela ficava sentada numa cadeira no HC de São Paulo, sem lamentos ou revolta, apenas esperando, vivendo um dia de cada vez. A conexão materna é algo inexplicável, o filho que estava prestes a partir, num chamado silencioso a esperou no hospital e ela foi ao seu encontro, a mãe pegou o pequeno nos braços e ali, naquele ninho aconchegante de amor, se foi.

Ela sofreu, sofre, uma dor que não passa, fica guardada sendo sentida todos os dias. No entanto, não é triste, é alegria, vida, um escândalo de mulher, forte, poderosa, gigante em seus 1,55 metros. Arrisco dizer que nunca vi pessoa mais alegre, tanto que jamais pude imaginar sua dor, até ser mãe. Rachel é minha madrinha e Rodrigo, meu primo, ele sempre esteve presente na minha história e, apesar de não o ter conhecido, é uma figura marcante na minha vida: o menino que estava sempre sorridente, vestido de anjo, meu anjo.

Marília, 29 anos, falava 9 línguas, comissária de bordo internacional, piloto de helicóptero com um futuro promissor na aviação e em qualquer lugar onde desejasse estar. Morava na Itália, trabalhando e vivendo sua vida trilhada com esforço e cuidado. Entretanto, dia 29/08/2013 Cláudio Grigoletto estrangulou Marília, num gesto covarde para ocultar sua gravidez, negou o crime repetidamente até que fosse comprovada a autoria. Hoje está na cadeia e condenado a prisão perpétua. Porém, bem mais que duas vidas foram ceifadas e a prisão é apenas o que a Justiça pode fazer aos olhos da sociedade. Para Natália, mãe de Marília, nada mais a faz sofrer, pois, o pior que poderia acontecer em sua vida é fato consumado. Esse homem não acabou com a vida de sua namorada e filha: pais, irmã, parentes e amigos próximos, além de sua própria família italiana, tiveram suas vidas destruídas. Essa mãe sorri, corre, dança, trabalha e é um exemplo para quem a rodeia, mas vive uma dor que não acaba, todo os dias aprende a preencher os minutos na tentativa de sobreviver à dor.

E o que me fez refletir tanto sobre as mães que perdem seus filhos? Exatamente no dia que falei sobre a morte tantas vezes algo afundou meu estômago, veio abrindo um buraco da minha garganta até́ o meio da minha barriga. A gente conversava descontraidamente falando sobre filhos, sapatilhas, roupas de ballet até que ela solta: “lá́ em casa tem collant, roupas, sapatilhas... você sabe que eu tenho uma filha que morreu né?!”. Eu congelei, não conseguia respirar, nenhum músculo do meu corpo se movia. Acho que fiquei uns 5 segundos parada, sem piscar, mas parecia que todos os momentos com meus filhos passaram na minha frente exatamente nesse demorado curto espaço de tempo. Respondi que não sabia - afinal aquela mulher estava sorrindo todos os dias, ela é alegre, ela vive, dança, dá aulas, vive! Aquela mulher sorridente, alegre e dançante, passou 9 anos acarinhando e cuidando de sua filha, vendo seu bebê crescer. De repente ela a está enterrando? Não! Isso NÃO está́ certo! Então a abracei, mas na verdade ela quem me abraçou, pois minha dor e sufocamento não serviam de nada naquele gesto. Aquela mulher órfã de filha me abraçou porque meus braços não poderiam oferecer conforto algum a ela, mas o abraço dela foi como se me dissesse pra eu me acalmar.

Depois desse dia nunca mais fui a mesma, percebi que tenho tudo nas mãos e muitas vezes reclamo, descobri que todo dia é um milagre, que saúde é a maior riqueza que existe e que estar com os filhos é o mais glorioso. Aprendi a olhar com mais respeito para a dor do outro, a julgar menos, afinal, quase nunca sabemos a história por trás da máscara da loucura, da melancolia ou da explosão de comportamento. São tantas Rachels, Jaquelines, Natálias, Aparecidas e Marias que, embora diferentes, compartilham a mesma dor insuportável de enterrar seus filhos.



Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.



 
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