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13/12/2019 às 13h23min - Atualizada em 13/12/2019 às 13h23min

Um manifesto feminista e antimanicomial!

Por Dione Pizarro*
No último final de semana, o CITU trouxe ao Teatro Grupontapé a peça Sobre Ratos, Maridos e Pulgas, do grupo Coletivo Flores de Teatro. No palco, a vida de três mulheres. Rosa Luxemburgo, a única presa política. Camille Claudel, a escultora que passou 30 anos de sua vida internada em um manicômio, sem que a mãe a visitasse, como também Pierina Cechini, filha de imigrantes italianos, que matou sua filha de dezessete meses por afogamento, o que leva à sua internação em um hospício em Porto Alegre. Um dos fatos que ligam essas três personagens é o de terem sido retiradas do convívio social e familiar e, do exílio forçado, escreverem cartas. Mulheres determinadas em devires, mas fragilizadas em um universo machista, tanto o social, quanto o prisional e manicomial.

O título já define o foco de leitura escolhida pelo grupo e que amarrará as personagens, posto as três se sentirem traídas dentro do universo em que viveram e vivem. Rodeadas por ratos literalmente e metaforicamente, alienistas, companheiros de luta, maridos, amantes e pais e que, portanto, as colocaram no convívio com pulgas e pulgas em seus escritos.

A peça, ainda em embrião, já nasce com força. E o digo pela reação da plateia. Todos ficaram para o “bate papo” final e, tanto espectadores, como o grupo, tiveram a sorte de ouvir a crítica e depoimento de uma vítima de abusos do ex-marido. Com certeza, a próxima apresentação virá mais forte.

Ao entrar, o espectador se depara com uma tela enorme, ao fundo, onde são projetadas imagens do documentário sobre o manicômio em Barbacena. No palco, encarcerada nesse cenário, Roberta Liz começa a dar gestos e falas dessas grandes mulheres que foram apequenadas, nesse mundo de horrores. Ao longo do espetáculo, a denúncia do cárcere se sobressai em relação à vida que as trouxeram a esse momento, a não ser no primeiro ato em que a personagem Pierina fala mais sobre os abusos e a miséria na qual vivia. Talvez seja o momento de aprofundar esse aspecto, posto as cartas serem uma forma de insubmissão e desvelarem a natureza da sociedade opressora e machista. Se na vida foram personalidades fortes, nas cartas podemos ver o feminino estuprado pelo universo masculino, mas também uma forma de ação/reação ao patriarcado.

O início é emocionante. A mim, o ponto alto do espetáculo. A mãe que ama seu rebento, mas o afoga para passar a febre e a fome que virá. Roberta Liz, com corpo e voz bem preparados, acompanha Mercedes Sosa em Duerme Negrito, uma feliz escolha, pois diz da vida dura de Pierina no campo, sem nunca ter nada para si.

Outra escolha acertada no cenário é o cabide com um jaleco de médico e sua voz em off. Aqui fica uma sugestão para se pensar mantê-lo em todos os atos. A ideia de não ter uma personagem masculina em cena fez lembrar uma análise de Saffioti sobre o filme Lanternas Vermelhas, no qual o patriarca nunca aparece, apenas seu perfil nas sombras, porém seu poder podendo ser encarnado em outros personagens, uma vez que “a ordem patriarcal de gênero, rigorosamente, prescinde mesmo de sua presença física para funcionar”. 

Quanto aos efeitos de luzes, aumentando e diminuindo a luminosidade rapidamente, em conformidade com a sonoplastia, dá ao leitor a dimensão do que é ter o cérebro, - o tempo todo cheio de recordações de vidas ceifadas em seus anseios -, cortado pelas falas dos outros “loucos”, alienistas, torturadores.

Ao final, Rosa, prisioneira, lava e alinhava roupas sujas de mortos e grita: ‘quem vai me costurar’, dando o tom final para coser as histórias das três mulheres reais que se tornaram personagens no imaginário de tantas gerações.

Parabéns ao grupo pelo triste, belo e imprescindível espetáculo. Que tenha vida longa.


*Profª aposentada de Geografia e Mestra em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP – análise crítica de peça do CITU.

*Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.







 
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