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01/09/2019 às 08h15min - Atualizada em 01/09/2019 às 08h15min

Dureza

WILLIAM H STUTZ

Noite mal dormida. O frio começou já no entardecer e, a cada minuto que avançava o escurecer, só fazia piorar. Dois dias sem comer quase nada. Sentiu-se fraco. Custou abrir olhos ao brilho tímido da manhã. Passara o virar das horas ao relento. O orvalho salpicava todo seu corpo. Cada gotícula parecia pequeno punhal a lhe ferir. Aos poucos os raios de sol foram atravessando a neblina da serra, criando contorno em forma de sombras e no assim fazer chegaram até ele. O calor lhe chegou abençoado, primeiro em sua cabeça. Avançando lento, mas em arrasteio contínuo, até que todo seu corpo sentiu aquela iluminada coberta. Devagar, ainda sentindo as juntas travadas, foi fazendo leves movimentos. Primeiro os dedos, um a um num tamborilar sem som, sem ritmo. Depois a carícia lhe percorreu as costas, desenferrujando pedaço por vez. Conseguiu por fim se movimentar. Arriscou alguns passos. Virou olhos em dor, mas logo se sentiu revigorado e prancheou sobre pedra próxima, se deixando ficar como a recarregar cada molécula de seu velho corpo. Passada hora e tanto, nada doía, apenas a fome. Essa o carcomia por dentro. Era uma dor diferente. Dor que grita e nada, a não ser comida, pode aplacá-la. Lembra dor da alma que nada abranda. Tinha que achar algo hoje. Uma pequena porção lhe bastaria.

Caminhou lento, sentidos em alerta pela vegetação rasteira e retorcida. Quem acompanhasse seu rastro poderia jurar que bamboleava no mover, em ginga malandra. Jamais saberiam da sua estratégia de caça. De súbito sentiu cheiro de comida. Salivou em abundância, se pôs mais tenso ainda. Pela sua experiência percebeu que não estava longe. Sua vista não dava alcance, pois rastejava bem rente para não se fazer notar.

Tenso, a fome o fez desprevenido e acabou por se descuidar. Em curto trote espiou por de trás de um cupinzeiro. Se um paraíso fosse possível, era aquele logo abaixo. Galinhas aos montes com seus pintinhos a ciscar quirera amarelinha no terreiro limpinho de vassoura. Ninhos aos montes dentro de um cercado de tela, certeza de abundância de ovos. Imensas mangueiras deitavam sua sombra bem próxima a um chiqueiro de tábua, fácil de transpor e os frutos maduros se espalhavam por toda banda, num apodrecer lento em nuvem de mosquitinhos e abelhas. Qual o problema de uma fruta quase estragada ou roída em uma banda, para quem estava pronto a comer até grama de tanta fome?

Ia avançar em corrida rápida, agarrar a primeira coisa que desse conta e sumir numa moita imensa de bambu, que se mostrava bem fechada na outra ponta do banquete. O instinto nesse momento falou mais alto e prontamente parou a observar. A vigiar aquela fartura, deitados na varanda da casa, três imensos cães, olhavam atentos talvez gêmeos do filho de Tifão, Cérbero, aquele de três cabeças, guardião do reino da escuridão, do inferno. Se o percebessem era o adeus. E cá pra nós, morrer com fome não estava em seus planos. Talvez até morrer de comer, mas com as tripas vazias jamais. Recuou deixando o cupinzeiro a olhar o vazio. Tinha que armar um plano e, naquele momento, o melhor que podia fazer era ter paciência, esperar. Ficar contra o vento para que seu cheiro não chegasse àqueles parentes dos guardiões da caverna que conduz a Hades, o submundo . Hora tinha que dar certo.

Deixou-se ficar a contar passarinhos e gaviões. Estes deveriam estar também só no aguardo, como ele, de uma oportunidade. Nem vem, pensou. A fome é minha. Vocês podem voar longe e caçar em qualquer ponto. Eu mal me dou nas pernas. O tempo lento como água de grande rio foi se arrastando. Tropel de cavalos e vozeirão a gritar agitado. Fechavam o gado. Espiou curioso, olhou ligeiro para a varanda, não viu os cães. A poeira do pisoado do gado levantou em cortina perfeita para proteção. Era agora ou nunca. Levantou-se na ponta dos pés e em carreira desenfreada e, claro, gingada, correu até o galinheiro. Os gritos das penosas eram abafados pelo bater de cascos de cavalos e gado. Ouviu o latir das bestas, mas isto não o parou, pois era movido à fome. Esta se torna forte e suicida como a raiva. Ali mesmo comeu voraz quatro deliciosos e frescos ovos. Conseguiu ainda colocar mais dois na boca e seguiu reto para o bambuzal. Devagar, se fartou lentamente. Sua longa língua lambia cada pouco do ovo que se esvaziava. Estava feliz. Vida de Tiú não é fácil. Um dia de cada vez. Pelo menos arranjou morada boa no bambu e despensa farta no quintal. Ia ficando por ali, até que o Cérbero tupiniquim não o enxotasse para longe. Mas isso é outra história! Outra história.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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