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16/01/2020 às 10h23min - Atualizada em 16/01/2020 às 10h23min

Crítica social volta a permear enredos da folia

Escolas do Rio fazem referências claras ao mundo político e também evocam figuras messiânicas

CLAUDIO LEAL/FOLHAPRESS
A cantora Elza Soares é a grande homenageada da escola Mocidade Independente . | Foto: Divulgação
"Brasil/ Esquece o mal que te consome/ Que os filhos do planeta fome/ Não percam a esperança/ Em seu cantar." O "planeta fome" da cantora Elza Soares, homenageada da Mocidade Independente, promete orbitar a Sapucaí no desfile das escolas de samba do grupo especial.

Uma tradição da folia do Rio de Janeiro, a crítica social volta a permear os enredos de grandes escolas no Carnaval deste ano, a partir de 23 de fevereiro –alguns com referências claras ao mundo político. Os sambas evocam figuras messiânicas, como Jesus e dom Sebastião, e histórias do povo brasileiro, a começar pela vida da própria Elza, nascida na favela carioca de Moça Bonita, em Padre Miguel.

A cantora Sandra de Sá, coautora do samba-enredo "Elza Deusa Soares", destaca a coerência das opiniões da amiga. "A cabeça de Elza está no hoje com toda a bagagem da vida inteira. Dão valor às coisas que ela fala agora, mas são coisas que ela falou o tempo inteiro. Ela veio atravessando este século falando a mesma coisa, porque a gente caminha muito lentamente no Brasil."

"Elza inspira o Brasil a partir do momento em que não abre mão dela como cidadã com voz ativa. Ela se respeita e respeita o país em que ela vive", completa Sá. Atual campeã, a Mangueira escolheu o enredo "A Verdade vos Fará Livre", guiado pela voz de um Jesus carioca –"Eu sou da Estação Primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ Moleque pelintra do Buraco Quente/ Meu nome é Jesus da Gente/ (...) Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem Messias de arma na mão". O desfile da verde-e-rosa será conduzido mais uma vez pelo carnavalesco Leandro Vieira.

"A história de Jesus foi várias vezes desvirtuada para dar conta de projetos de poder. O enredo resgata a história de Jesus e quer pensar quem seria esse Jesus hoje", diz a sambista Manuela Oiticica, a Manu da Cuíca, que divide a autoria da composição com Luiz Carlos Máximo.

A dupla integrou o grupo de oito compositores de "História para Ninar Gente Grande", o já clássico samba-enredo do ano passado, vitorioso ao celebrar o "país que não está no retrato", lembrando a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018. Dessa vez, a crítica ao Brasil oficial assume a perspectiva de um Cristo do morro. "Fizemos uma releitura com esse Jesus nascendo no morro da Mangueira e também sendo torturado e assassinado pelo Estado, como é a realidade de muitos da juventude brasileira. Também assassinado pelos intolerantes, pelos mercadores da fé. Acaba sendo um bom diálogo entre o Jesus histórico e a história atual", afirma Manu da Cuíca.

"O Carnaval tem vários momentos em que é mais crítico. São momentos em que as contradições da sociedade ficam mais evidentes. Não é a primeira vez e não vai ser a última", ela acrescenta. Outro messias ganha protagonismo no enredo "O Santo e o Rei: Encantarias de Sebastião", da Paraíso do Tuiuti. O rei português dom Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, em 1578, se encontra com o padroeiro "da cidade das mazelas". A espera pelo "Encoberto" sempre rondou festas populares e cordéis do Nordeste. Em São Paulo, a escola Colorado do Brás também revisita o mito sebastianista no samba-enredo "Que Rei Sou Eu?".

São Clemente

Trambiqueiros, laranjas e falsos religiosos serão representados na avenida pela escola carioca São Clemente, que aborda os temas políticos sem meios-termos. "Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!/ E o país inteiro assim sambou/ Caiu na fake news!", versejaram os compositores do samba-enredo "O Conto do Vigário".

Um desses oito batutas é o humorista Marcelo Adnet, que torce desde os anos 1980 pela escola com sede em Botafogo, perto da casa de sua infância. De uma família de músicos, ele contribuiu com a letra e a melodia, e vem participando dos ensaios. "A escola tem por tradição trazer temas críticos, sacanas, ácidos, desafiadores. Tanto que o bordão da São Clemente é 'Olha a crítica!'", diz Adnet. "É uma maneira de falar sobre a nossa situação, mas sem citar ninguém nominalmente."

"Escola de Samba São Clemente veste a fantasia de oposição com samba-enredo contra o PR @jairbolsonaro e pastores. No meio dessa luta, Deus vai deixando cada vez mais claro quem é quem para nós evangélicos, que somos um terço dos eleitores brasileiros", criticou o pastor e deputado federal Marco Feliciano, em seu perfil no Twitter.

"Acho maravilhoso", reage Adnet. "A letra não fala dele, não faz alusão a ele, não tem nada a ver com ele. E ele matou no peito a crítica, vestiu a carapuça de uma maneira sensacional." O humorista não desmente a notícia de que vai desfilar fantasiado de presidente Jair Bolsonaro. "Sinceramente, não sei de onde a informação veio. Não foi de mim, nem foi da escola", diz, com cautela. "Mas a gente adorou a ideia. É uma ideia muito boa."

"Acho que o Carnaval tem esse poder mesmo de catarse. A gente vive uma época de muitas censuras, é incentivado a se calar e quase forçado a ficar quieto. O Carnaval é uma explosão que joga tudo isso em nossa cara", completa Adnet. A São Clemente deve criar alegorias com as "fake news". Alegorias verdadeiras.

Portela

Na Portela, a ancestralidade indígena conduz o enredo "Guajupiá, Terra sem Males", sobre a vida e a cultura dos tupinambás antes da chegada dos colonizadores portugueses ao Rio. "Índio pede paz, mas é de guerra/ Nossa aldeia é sem partido ou facção/ Não tem bispo, nem se curva a capitão." Rogério Lobo, um dos compositores da Portela, diz que não houve intenção política nas menções a "bispo" e "capitão". Os versos só comentariam a recusa dos tupinambás a qualquer interferência hierárquica em suas aldeias.

"Quando a gente cita que não tem partido, nem facção, usa liberdade poética. As pessoas entendem de outra forma, até pela questão política que o Brasil vive. O nosso objetivo nunca foi politizar o samba", afirma Lobo. "O enredo da Portela não pede isso. O enredo não é político. As coisas acabam se misturando um pouco."

"A essência é que não existia líder religioso nem existia um comandante a que a etnia tivesse que se subordinar de forma autoritária", reforça.








 

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