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05/01/2020 às 08h30min - Atualizada em 05/01/2020 às 08h30min

A saga de um fazedor de coisas

Artista plástico Alexandre França conta como foi escolhido pela arte

ADREANA OLIVEIRA
Alexandre França nasceu em Araguari, mas passou toda a sua vida em Uberlândia | Foto: Adreana Oliveira

No horário marcado para a entrevista a repórter chega ao local indicado. Não tem campainha ou interfone e está tudo fechado. Um olhar mais cuidadoso levou a um pequeno sino que anunciaria a chegada. Antes de o anfitrião Alexandre França abrir a porta, a repórter é saudada, ao primeiro tocar do sino, por Lua e Thor, dois adoráveis cachorrinhos que habitam a casa-loja-ateliê do artista plástico mineiro no bairro Lídice.

“Há sete meses houve essa mudança de configuração. Eu e minha família viemos pra cá e desde então a loja, o ateliê e minha casa ocupam o mesmo espaço e tem sido uma experiência interessante”, disse França, ladeado pelos atenciosos Lua e Thor, que logo perceberam que seu dono estava fora de perigo e voltaram a percorrer outros espaços da casa.

Nascido em Araguari (MG), Alexandre França veio para Uberlândia aos três anos de idade com os pais. Antônio Luiz França (in memoriam) e Júlia Silva Pereira França não tinham profissões relacionadas ao meio artístico, mas eram frequentadores de museus, igrejas, galerias de arte e outros espaços expositivos seja em Uberlândia ou em qualquer outra cidade que visitassem.

A arte do fazer esteve sempre presente na vida de Alexandre França. Suas brincadeiras de infância sempre foram ligadas a questões criativas. Ele conta, com bastante humor, que nunca foi bem nos esportes, algo que perdura até hoje. “Não era esse o meu universo”.

E depois da mudança para Uberlândia as viagens para Araguari eram frequentes, para visitar os avós. “Na entrada da cidade tinha uma cerâmica. Mamãe parava lá e pegava dois torrões de argila para exercitarmos nossa criatividade. Com os primos mais ou menos da minha idade, quatro, cinco anos, fazíamos improvisações de teatro também. Então, essa minha conexão com a arte está muito ligada ao fazer”.

Aos 8 anos de idade França entrou no Conservatório Estadual de Música Cora Pavan Capparelli. Fez aulas de flauta, piano, violão, violino, artesanato e esse universo rico o estimulava todo o tempo. Apesar disso, França foi um menino extremamente tímido.

Quando chegou ao colegial, na Escola Estadual Bueno Brandão, teve contato com uma de duas professoras que marcaram sua vida em épocas diferentes e coincidentemente têm o mesmo nome: Maria de Lourdes Barbosa (escritora), professora no colegial, e a outra Dona Lourdinha, professora de Educação Artística no Ensino Fundamental, também diretora do Bueno Brandão.

“A Dona Lourdinha conta que eu era tão tímido que demorei dois meses para conseguir lanchar no refeitório com os outros alunos no recreio. Ela percebeu isso, ficou com dó de me ver sozinho na sala de aula e me levava para tomar lanche com ela. As aulas dela me estimularam a minha interação ainda maior com as artes”.

A família de Alexandre França sempre morou nas imediações do Centro de Uberlândia, antes mesmo que fosse tomado pelos prédios. Foi na galeria que pertencia a Paulo Carrara, na avenida Rio Branco, que França viu a primeira exposição. A artista era do Rio de Janeiro, Efigênia Assis Figueiredo, que decidiu por esse caminho aos 70 anos. “Ela fazia aquarelas marinhas maravilhosas”.

Com a janela do seu quarto da infância voltado para a avenida Floriano Peixoto, França teve em sua porta a manifestação das festas do Congado de Uberlândia por boa parte da vida, uma paixão que persevera, inspirando muitos trabalhos do artista.

Aos 12 anos o pai de França comprou o primeiro piano para o filho, uma peça centenária que hoje tem um lugar especial na casa. Foi nessa idade também que ganhou seu primeiro cavalete e tintas a óleo. “Eu sempre fui estimulado a fazer o que eu gostava, nunca fui reprimido, o que geralmente acontece com muita gente. E essa formação, esse estímulo dentro de casa é muito importante para facilitar algo que todos sabemos que não vai ser fácil”.

E a convivência com todo o universo artístico parecia estar ligada à própria existência de França. A professora de Artes da 8ª série de França, prestes a concluir o curso de Artes na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), dava aulas à noite no estágio na área de xilogravura e convidou quem se interessasse a participar.

“E a UFU era o fim do mundo. A gente não tinha carro, tudo parecia longe. Minha mãe e meu irmão foram comigo fazer o curso. Foi a primeira vez que entrei na universidade na qual vim a lecionar anos depois”. Aliás, além do pai, o irmão de Alexandre França, Luciano Pereira França, são as maiores saudades do artista. Luciano teve um câncer bastante agressivo e faleceu em 2011 aos 40 anos.

 TRAJETÓRIA

DE ALUNO A PROFESSOR
A experiência de entrar em uma universidade antes de ser um universitário foi outro fator que ajudou na escolha, já bem óbvia para Alexandre França, da carreira.

“Eu gostava de música, mas nunca fui um bom executor, então Música estava fora de questão. Pensei no curso de Decoração, que era meio incerto no sentido de não entender bem do que se tratava. Artes era a escolha certa e hoje percebo isso ainda mais claramente. Não me vejo fazendo outra coisa”.

E os anos na faculdade, concluídos em 1988, estão entre os melhores da vida do artista. Ele conta que a turma era muito afinada e a sintonia era boa entre docentes e discentes. França foi um universitário atuante, mobilizador, participativo, produtor sempre disponível. No terceiro período de faculdade já havia ganhado o prêmio “Salão”, em Ribeirão Preto (SP).

Tudo isso alinhado aos pensamentos de seus professores artistas, com quem conviveu de perto, virou amigo: Maciej Babinski, Lucimar Bello, Shirley Paes Leme, Hélio Siqueira. “Isso é algo bem mais difícil de vermos hoje em dia, um artista lecionando. A maioria atualmente pode até ter alguma produção artística mas tem outros interesses, é o professor acadêmico”.

Com um currículo impecável, em 1991 tornou-se professor efetivo do curso de Artes da UFU e sempre viu seu papel como um facilitador, alguém que abre portas. Não por acaso, em sua trajetória de 20 anos na UFU foi orientador de mais de 70 Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC).

“Sempre me vejo nessa situação do abridor de portas para que haja troca entre os dois lados e não uma pessoa que só faz uma coisa. A gente não ensina arte. A gente ensina a olhar, a perceber, a se encontrar e se entender e principalmente, produzir algo que seja a sua cara e não a minha. Sempre tive essa clareza”.

Não existia meio termo com o França professor. Os alunos amavam ou odiavam. Ele sempre estimulou as produções, exposições e levava o aluno a se questionar o que estava fazendo ali.

“Se você faz um curso integral, tem que fazer bem feito. Não dá pra querer se formar pintando três telas. A experiência da arte é construtiva, precisa do tempo, frequência, hábito, disciplina. E esse meu ponto de vista, que é o mesmo até hoje, difere do de muita gente”.

Em tempo, as denominações do curso de Artes Plásticas e Artes Visuais é algo que França ainda questiona. “Prefiro plásticas até hoje pelo simples fato de que nem toda arte visual é plástica, mas toda arte plástica é visual. O visual é tão tecnológico no sentido de não dar a possibilidade do fazer. Sinto que algo se perde aí. É como se o fazer fosse inferior ao criar e um ambiente virtual, por exemplo”.

Há sete anos, quando deixou a carreira universitária, França foi muito questionado. “Você está louco?”. Afinal, quem em sã consciência deixaria um emprego estável, bem remunerado, em troca de algo incerto? “Eu sempre gostei muito de lecionar, tanto que leciono até hoje fora da universidade. Uma coisa que sempre me incomodou foi a burocratização do ensino, da pessoa. A última coisa que se discute ali é a arte e tem muita gente, entre alunos e professores, desestimulada e o ensino pra mim sempre foi relacionado a afetividade: arte, ensino e afeto”.
 
OS CONCEITOS
A definição de arte já é complexa. Não existe uma norma, às vezes, é escolhido um ponto de vista, um pensador a quem seguir. Falamos sobre o artista americano David Datuna que em dezembro passado, na feira de arte contemporânea Art Basel de Miami, Estados Unidos, comeu uma banana, que estava grudada na parede com fita adesiva, e que fazia parte da intervenção “Comedian”, do italiano Maurizio Cattelan, vendida a um colecionador francês por US$ 120 mil.

Para França, este episódio deixa claro que a destruição da obra é uma das muitas possibilidades da arte, entre elas, dar um “cutucão” na sociedade, um soco no estômago.

“É para cair a ficha, mostrar o quanto estamos ‘loucos’ com algumas coisas. Não é algo que valorize em si, mas a atitude dele. Por exemplo, por que precisamos de um telefone que custa R$ 10 mil, ou um carro que custe R$ 200 mil se por muito menos temos as mesmas funcionalidades em outras marcas? A gente cai sempre nessas situações de valores das coisas”.

Para França, é aquele momento de 15 minutos de fama vislumbrados por Andy Warhol (1928-1987) ao qual todos teriam direito no futuro...que já chegou. Aquele momento da selfie que viraliza. “Tem momentos que parece que todo mundo quer ser famoso. Muitos não vivem mais a vida real, só se realizam em uma plataforma como essa, por exemplo”.

Questionado se Warhol usaria Instagram se estivesse vivo, França ri. “Acho que ele estaria questionando tudo isso. Eu mesmo me vejo em uma contradição constante. Uso o meu para fins comerciais, mesmo não sendo comercial. Penso muito no que recebemos de energia, boa ou ruim, de quem vê as imagens que postamos. Sempre fui curioso e um fazedor de coisas. Se estivesse escolhendo minha carreira hoje não seria diferente, estaria nas artes, talvez utilizando mais tecnologias”.
 
A ARTE ENQUANTO CURA
Para França, a figura do artista inacessível ainda é bem forte na sociedade e o papel do professor, quando relacionado com afeto, pode mudar um pouco isso.

“O professor é aquele que acredita em você, que te incentiva, te aconselha, seja em que segmento for e para isso é preciso ter afetividade. Infelizmente, é ruim falar das escolas, mas percebo que elas estão pouco afetivas, os alunos são tratados como números. Entendo as diferenças e todos deveriam encontrar ali um lugar de conforto”, disse França.

Ele comenta ainda que a relação de arte com as pessoas no geral ainda é incompreendida. As pessoas não se permitem a troca com o artista, usufruem pouco. Para França, todos que se encontram com a arte partem de algo que têm que curar dentro de si, resolver algo.

“Todos nós, por timidez, pela forma de enfrentar o mundo, por coisas que quer dizer e não consegue. A arte surge como um caminho. Dificilmente quem é bem resolvido vai procurar o caminho da arte. Tem gente que odeia quando falamos que a arte cura, mas eu continuo falando porque ela transforma mesmo”.

E o caminho muitas vezes é longo. Tem artista que ainda não se curou, continua “doente” no percurso e se torna uma pessoa inacessível, egoísta e sem empatia.

E seria possível separar o artista da obra? Para Alexandre França sim, há pessoas que conseguem fazer essa distinção. Mas não ele. “Eu me reconheço no trabalho, me vejo naquilo e quando faço uma obra me reafirmo. Entre minha arte e vida não consigo fazer essa distinção, tanto que eu moro no mesmo lugar que trabalho”, disse ele na Casa de Ideias, sua loja-ateliê que completou 30 anos em 2019.

Se ele tem um conselho para seu 2020 ser melhor? Sim: tente entender o papel que a arte tem na sua vida. “Quando você sabe quem é, fica mais fácil lidar com o outro.”








 


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