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27/07/2024 às 08h00min - Atualizada em 27/07/2024 às 08h00min

Os pecados da medicina

JOÃO LUCAS O'CONNELL
O médico britânico Richard Asher é considerado um dos principais pensadores da medicina no século XX. Dono de uma escrita refinada e de uma ironia precisa, Asher fez grandes contribuições para a medicina, como a descrição inicial da síndrome de Munchausen e da loucura mixedematosa. Além disso, ele já alertava em sua época para as doenças que os médicos poderiam causar e descreveu o interessantíssimo “paradoxo de Asher”. Porém, um de seus textos mais famosos é aquele onde ele descreve os pecados da medicina. Aqui são descritos os sete pecados originalmente descritos por Asher acrescidos de três pecados igualmente graves, mas que podem ter ficado mais evidentes atualmente.

1- OBSCURIDADE
Os médicos parecem fazer questão de falar bonito e de usar os seus jargões, ainda que isso muitas vezes dificulte a comunicação com os pacientes e mesmo entre os próprios médicos. O uso de palavras e expressões complicadas dificulta a compreensão do paciente, o qual é o maior interessado em compreender sua própria doença. 

As palavras faladas e escritas existem para facilitar a comunicação entre as pessoas. Assim, a nossa falta de clareza verbal e o uso de garranchos escritos muitas vezes só serve para atestar um tanto de arrogância e descaso pelos outros.

2- CRUELDADE
As crueldades perpetradas pelos médicos são inúmeras para Asher. Elas começam com a crueldade ao falar coisas desnecessárias (como comunicar um diagnóstico de uma doença grave sem o mínimo de empatia) ou deixar de comunicar aquelas coisas cruciais para o paciente. Existe ainda a nossa tendência a crueldades físicas ao submetermos os pacientes a exames, tratamentos e procedimentos inúteis e desnecessários ou ainda cruelmente dolorosos. Para Asher, uma das maiores crueldades dos médicos acontece quando nós submetemos pessoas já em processo de morte a exames e tratamentos que só aumentam o seu sofrimento.

3- FALTA DE EDUCAÇÃO
Asher não se refere aqui àquela educação formal que todos os médicos devem ter, mas à educação no que se refere ao trato cortês com as outras pessoas. Em relação aos pacientes há coisas fundamentais como apresentar-se ao fazer o primeiro contato e sempre demonstrar boas maneiras ao lidar com pessoas já fragilizadas pela doença. Em relação aos outros médicos e, principalmente, aos outros membros dos serviços de saúde a demonstração de cortesia nas relações é igualmente importante.

4- HIPERESPECIALIZAÇÃO
Já na época de Asher a especialização exagerada dos médicos era um problema, cuja importância aumentou muito com o tempo. Não que seja errado um médico se especializar em determinada área, o que parece ser um problema é que os médicos “esqueçam” que todos nós já fomos um dia clínicos gerais aptos a resolver uma enorme proporção dos problemas apresentados pelas pessoas. A hiperespecialização tem ainda o nefasto resultado de fragmentar os cuidados das pessoas, com resultados nem sempre benéficos.

5- ESPANOFILIA
A espanofilia descrita por Asher se refere ao amor pelo que é raro. Isso é muito comum em algumas fases da vida profissional e em determinadas especialidades. Dá-se preferência ao que é raro e se deixa passar coisas comuns. Assim, uma criança com dor de barriga e diarreia na maioria das vezes terá uma verminose ou infecção intestinal simples e não uma doença inflamatória intestinal. O mesmo vale para inúmeras outras situações da medicina.

6- MAU SENSO
A expressão de Asher aqui significa apenas a ausência de bom senso, esta qualidade tão importante para entender e lidar com os problemas das pessoas. Um médico sem bom senso pode sugerir um remédio caríssimo ou uma dieta rigorosa com horários e componentes rígidos para uma pessoa que vive na periferia pobre de uma cidade, que acorda de madrugada para ir para o trabalho e que não tem dinheiro nem para suas despesas mais básicas.

7- PREGUIÇA
A preguiça é diferenciada por Asher como física e mental. A preguiça física englobaria a falha em realizar os procedimentos mais fundamentais de uma consulta médica, como a coleta de uma anamnese adequada seguida de todos os aspectos fundamentais do exame físico. 

Já a preguiça mental se referiria ao hábito de aceitar como certo tudo aquilo que recebe da mídia ou dos periódicos científicos sem a necessária dose de ceticismo e sem a vontade de analisar a questão e tirar suas próprias conclusões.

8- PRESSA
A pressa é um dos novos pecados da medicina. Cada vez mais, nós médicos tentamos imprimir aos pacientes e a suas doenças o ritmo alucinado de um mundo cada vez mais virtualizado e imediatista. O problema é que não podemos acelerar os processos de cura do organismo e da natureza. 

Tentar acelerar demasiadamente a recuperação de uma doença pode causar danos aos pacientes. Além disso, existe a pressa da consulta médica, a qual é evidentemente alimentada por aspectos econômicos, mas também por questões culturais.

9- NEOMANIA
A neomania é a nossa grave tendência para achar que tudo o que é mais novo é melhor simplesmente por ser mais novo. Isso nos leva ao exagero no uso de novos medicamentos e tecnologias que nem sempre são benéficas e que muitas vezes nada acrescentam aos cuidados além de seu custo exorbitante. É claro que existem novidades boas, mas o nosso limiar para aceitação das novidades deveria ser bem mais alto do que o que vemos hoje.

10- CERTEZA
Existem poucas coisas mais perigosas que um médico cheio de certezas. Aquela máxima dos filósofos é relevante aqui: quanto mais estudamos, mais descobrimos o quanto não sabemos. Podemos acreditar em nossas intervenções e devemos certamente manter um aspecto otimista em relação a elas, mas é fundamental mantermos sempre um grau de ceticismo. As situações de certeza são raridade na medicina. 

Na maioria das vezes, o que temos são várias probabilidades, as quais devem ser combinadas entre si para que se chegue a uma determinada conclusão. Mas isso deve sempre ser permeado pelas incertezas, as quais devem ser reconhecidas para que se reduza nosso ímpeto à ação desmesurada ou pouco arrazoada. É o reconhecimento de nossas incertezas que pode fazer o médico agir de forma parcimoniosa em prol da segurança do paciente.

Como médicos somos grandes pecadores. Porém, como todos os pecadores, somos passíveis de perdão quando reconhecemos nossos erros e agimos de forma sincera para minimizá-los. Não reconhecer os próprios erros é uma característica dos seres arrogantes. Arrogância esta que é para alguns o pecado capital da medicina.

Para reflexão. 

 
*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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